segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Para falar com Deus: símbolos e ritos



Venho repensando os ritos e a linguagem simbólica que se usa todo o tempo na religião. Fui criado em um racionalismo que rejeitava esses artifícios como superstição. Descubro que não são.

A única forma de falarmos sobre (ou com) a realidade é através de intermediários. A mínima realidade que nos transcenda precisa já de um intermediário (leia-se médium). Tudo, em verdade, está mais ou menos revestido por um instrumento de manifestação que possibilita a comunicação de outro, comunicação com outro. 

Nós espíritas estamos acostumados com a mediunidade que intermedeia a comunicação do Espírito desencarnado através de um corpo carnal dotado de recursos especiais. No indivíduo, o próprio Espírito manipula o corpo por intermédio do perispírito. Por fim, dialogamos por intermédio da linguagem verbal e não-verbal.

Recapitulemos as tríades:

Espírito desencarnado - médium - Espírito encarnado
Espírito - perispírito - corpo
Eu - linguagem - Outro

Da mesma forma:

Sagrado - símbolos e ritos - profano

Todos seguem mais ou menos esse padrão:

Transcendência - intermediário - Imanência.

Nas elaborações poéticas, tanto da Grécia antiga quanto dos Hebreus, entendia-se que não se poderia ver qualquer deus, ou o Deus, em seu esplendor, em sua totalidade. Qualquer manifestação divina se dava por uma imagem: um touro, por exemplo, para Zeus, a sarça ardente, para Deus.

Daí, entender, agora, que símbolos e ritos não serem mais do que a condição necessária para ultrapassarmos, ainda que na insuficiência intransponível, nossa limitação de lidar com o divino. A realidade absoluta é incomunicável ou inapreensível para nós relativos*. Daí constantemente chegarmos à esta tríade que os místicos vivenciam:

Verdade - silêncio - Sensciência

É assim que consigo entender a Santíssima Trindade:

Deus-Pai - Sua ação no mundo - Jesus.

É assim que venho sentindo Deus:

Eu de joelhos para Ele.

domingo, 22 de outubro de 2017

De quem?

"De quem é esta efígie e esta inscrição?". Assim se expressa Jesus para orientar que se dê a César o que é de César. Mas, ele deixa implícito outra pergunta: onde está a efígie e a inscrição de Deus?

Onde?

sábado, 21 de outubro de 2017

Jesus menino sobre as águas

-Venha, José, venha ver!
- O que foi, Maria? Estou um pouco ocupado. 
- É Jesus. 
- O que ele fez?
- O menino foi ao rio e está nele. 
- Por Deus! Mas, ainda não o ensinei a nadar. 
- É isso que quero que veja, homem. Venha logo!

(José se assusta. Esfrega os olhos, foca a visão, aproxima o rosto. Esfrega os olhos de novo).

- Mulher - fala em tom baixo - chame logo o menino para dentro. Peça para que não faça isso na frente de ninguém. 
- Por que, José? 
- Guarda silêncio destas coisas, Maria. É pela vida dele que peço. Vá, chame a criança. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Um abismo entre nós e vós

MAS NA BÍBLIA DIZ, contra as comunicações mediúnicas, que "há um abismo entre nós e vós" (Lc 16:26). 

- Não. Nessa parábola, o abismo está entre o lugar de consolo em que Abraão e Lázaro estão e o de tormento do homem rico. Mas, quando o rico pediu para que Lázaro orientasse os seus familiares, Abraão, muito sabiamente, disse que o que eles precisavam não era de uma mediúnica, mas do estudo das muitas mediúnicas que já haviam se canonizado entre o povo hebreu.

Meu pai morreu de forma dolorosa



Amigo: Allan, meu pai faleceu há 4 meses e, assim que ele partiu, eu me interessei em ler o Livro dos Espíritos, mas comecei a ter medo, porque eu carregava ainda um peso de pensar que eu podia ter feito mais por ele, que meio que já passou. Hoje em dia, a minha angústia é saber se ele já está bem, porque ele morreu num processo muito doloroso. Foram quase 5 anos lutando contra um mieloma múltiplo, e os últimos meses foram muito sofridos. Existe alguma recomendação quanto a esperar um certo tempo pra obter notícias dele? Eu li em algum lugar que seria bom esperar um tempo até o espírito dele estar em melhores condições, visto que o processo de recuperação ia demorar mais, por ele ter sofrido muito com a doença. Abraço!

Allan: Por Partes:
1. "Eu podia ter feito mais por ele". Não há pontas soltas no universo. Deus fez as coisas de tal forma que sempre há uma chance de se acabar o que não se terminou. Se não nesta vida, depois dela.
2. "... se ele já está bem, porque ele morreu num processo muito doloroso." As mortes que deixam o indivíduo mais perturbado são as por acidente. Mortes que vão se processando lentamente, como as por câncer, tem, ao menos, a "virtude" de preparar o Espírito para o desenlace. A aceitação, que é o coroamento do processo de morte e morrer, é o sentimento que mais permite a abertura da alma para Deus. A revolta, o contrário. Claro que a pessoa, neste processo, migra de forma muito instável entre vários sentimentos. De todo modo, mesmo se seu pai tiver falecido com o coração pesado e cheio de revolta contra a existência, somos, todos nós, cercados por Espíritos bons que nos auxiliam o retorno para Deus. "Retornar para Deus" pode ser entendido, na perspectiva da experiência individual, como o retorno para um olhar ameno e otimista da vida, entendendo que tudo tem um motivo, nada está desgovernado, e que somos regidos por leis justas, boas e amorosas. É sentir-se acolhido, de novo, por um Pai.
3. "Existe alguma recomendação quanto a esperar um certo tempo pra obter notícias dele?". Se ele tiver morrido em revolta, as primeiras comunicações com ele devem ser a prece. A prece dirigida para ele e para o anjo-da-guarda dele é um tipo de comunicação que você não espera resposta. É um tipo de comunicação que é uma doação. Você doa os seus sentimentos mais nobres para ajudar na recuperação dele. Isso vai ajudá-lo a recobrar a consciência, e iluminá-la o mais rápido possível para que ele possa finalmente aproveitar essa nova fase da vida. De todo modo, tentar uma comunicação mediúnica não é proibido. Se ele não estiver em condições de se comunicar, e você tentar a comunicação em um lugar que mantém uma atividade nobre de exercício da caridade em todos os sentidos, acorrerá ao seu chamado, no tempo oportuno, algum Espírito bom que estiver com notícias dele. "Evangelho" significa isso: Boa Nova, Notícias Boas. Nessa palavra tem o prefixo EU, de coisa boa ou verdadeira, e a raiz ANGELO, de mensagem. No caso da passagem de Cristo na Terra, Ele, em Si, era a Notícia Boa encarnada. Mas, no caso da mediunidade, não deixa de ser um canal aberto para muitas notícias boas menores. Acreditamos, os espíritas, que a mediunidade é uma perpétua lembrança do que Jesus veio fundar na Terra: a certeza de um amor que dura, individualmente, para além da morte. Para isso é que as boas novas nunca deixam de ser transmitidas. (Se o medo de ler o Livro dos Espíritos já passou, volte a leitura, e me tenha como um parceiro para partilhar dúvidas).

Amigo: Queria dizer que só o que tu me disse já tirou muito da ansiedade que eu estava. Valeu, Allan! Abraço!

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Quero falar com minha avó que já morreu



Uma leitora do blog me questiona se seria possível se comunicar com sua avó já falecida. Segue o diálogo:

Ela: Oi, Allan, queria tirar uma dúvida contigo. Minha avó faleceu há 8 anos. Eu era muito apegada à ela. De toda a família, a única que ainda sonha com ela sou eu. Recentemente faleceu um tio e anda tendo algumas confusões familiares sobre herança. Queria muito tentar uma comunicação com minha avó. Nem sei se seria possível. Queria saber como ela está, algo assim. Venho de uma formação bem católica e tudo isso é desconhecido para mim.


Allan: Primeiro, queria agradecer por você ter de alguma forma confiado em mim para um assunto tão pessoal.
Seguinte, imortalidade da alma é a base. Ninguém morre, né? Acho que isso você acredita. O que o catolicismo não acredita ou abomina é a possibilidade de se comunicar com o que eles chamam de almas do purgatório. Mas, o Espiritismo mostrou que toda e qualquer alma que  esteja no plano espiritual tem condições de se comunicar com os que estão "na carne" (encarnados). Basta pensar que quando morremos não mudamos em quase nada. Persistem os mesmos desejos, raivas, faltas, sonhos, saudades, etc. Então, pra sua pergunta se seria bom para sua avó se comunicar com você, pergunte se seria bom ela falar com você aqui. Se sim, seria.
Contudo, é muito importante, quando estamos do outro lado, deixar de se preocupar com as coisas daqui. Passamos a ter outras necessidades de crescimento. Todavia, nem todos conseguem se desprender. Ficam preocupados com o que foi deixado para trás e não conseguem focar nas novas tarefas.
Um conjunto de Espíritos amigos (entre eles o Anjo-da-guarda) estão ao redor da pessoa tentando lhe proporcionar uma ótima vida no plano espiritual. Não é proibido você querer se comunicar com sua avó. Talvez seus sonhos sejam ela se comunicando já com você. O que pode acontecer em uma mediúnica é: ela demorar pra se comunicar, pois não recebeu permissão ainda; se comunicar um espírito amigo dela, que pode estar querendo poupá-la, pois ela não sabe o que lhe falar para "resolver" o problema ou lhe consolar; ela se comunicar e propor nortes importantes para o que vocês estão vivendo; ela se mostrar aflita com a situação e demonstrar isso na própria comunicação. Entre outras várias possibilidades.
Me permita uma dica para um assunto tão delicado. Não espere muito de uma comunicação mediúnica em termos de ela lhe revelar uma solução para os problemas. Vá com o espírito de querer reencontrar sua avó e matar a saudade com algo mais palpável que um sonho. A mediunidade foi feita para que tenhamos fé renovada de que a vida não acaba, a pessoa não se dilui na eternidade, e o amor tem motivos de sobra para continuar existindo. Só isso*. Querer respostas para a vida presente, das preocupações da vida presente, pode ser uma grande frustração.


Ela: Aceitei bem a morte da vovó, apesar da saudade. Mas, ocorrem tantas coisas em sonhos que tenho com a vovó, que me deu vontade de ver melhor isso. Entendi tudo! O que mais queria era sentir que ela está bem, que está feliz, que recebeu meu tio lá, que ela viu meus gêmeos. Seria mais isso!
Outro dia, li uma carta mediúnica de alguém que uma amiga conhecia. O que me chamou a atenção foi o português tão rebuscado. Minha avó não falaria assim com tão pouco estudo. A comunicação seria, então, como ela fazia aqui? Um dia antes de morrer, ela me disse: "eu te amo tanto, você vai ser mais feliz do que pensa, por tudo que fez por mim!" Ela teve morte súbita no outro dia! Ou seja, não esperávamos e nem ela. Me pareceu muito um recado.

Allan: Sobre o português rebuscado, há algumas questões bem mais complexas sobre isso. Por exemplo, a mediunidade, que é o dom de ser intermediário para os desencarnados, não é algo igual para todos, existem graus. Existem aqueles médiuns que deixam passar a mensagem como se ele fosse apenas um gravador, e existem outros que misturam coisas da própria personalidade na comunicação. O médium sente a presença, às vezes chega a enxergar o Espírito, mas não permite que a mensagem seja passada com fidelidade absoluta. Nestes casos, você encontra as marcas do médium na mensagem que ele passa. É como se estivesse passando um recado de ter ouvido falar. Aí passa na linguagem dele, porém você reconhece que deve ter sido a pessoa que disse pois há informações muito particulares que ele não poderia saber.
E a respeito do recado que ela lhe deu, às vezes, perto do Espírito se libertar do corpo, ainda que este não esteja moribundo, abre-se uma lucidez não usual. É como se o peso dos sentidos da carne diminuísse, deixando acontecer um lapso de eternidade na consciência da pessoa. Daí, as profecias podem vir à tona, ainda que seja revestida de uma fala de carinho profundo. Aliás, tanto melhor quando vem assim.


Ela: Entendi. Bem interessante tudo isso! Deus existe!


Dançando com os mortos ou Vovó em mim


Um amigo dado ao estudo de muitas culturas para além da nossa se encantou pelo butoh


... é uma dança que surgiu no Japão pós-guerra e ganhou o mundo na década de 1970. Criada por Tatsumi Hijikata na década de 1950

Ela é a filha de um passado de respeito religioso aos antepassados com um presente (o pós-guerra) cheio de mortos. A técnica da dança pede para que o ator se deixe assumir por toda a morte que nos circunda. É como se cada movimento fosse guiado por um passo das sombras. 

Quando você vê a coisa acontecendo, parece de fato bem sombrio. Não era para menos, a carnificina foi incomensurável. Há um luto profundo encarnado na dança. Parece que pega nosso coração atravessando o esterno e o acocha. 

Como o princípio desta dança é universal - a vida está cercada por morte, animada uma pela outra - fiquei pensando o quanto estamos dançando no nosso cotidiano, e percebi particularmente vovó ao acordar. 

Quase todos os dias, tomo um remédio, acendo o fogo, coloco água na chaleira, preparo o filtro do café, coo o café para a garrafa. Preparo o leite do filho mais velho, e acolho o mais novo nos braços descendo com a mãe dele pelas escadas. 

Todos os dias, vovó deixava o sol entrar em casa, acendia a lareira, colocava uma pequena panela velha no fogo, e o cheiro de café inundava a casa. As tapiocas esperavam os netos à mesa, e nós, pouco tempo depois, invadíamos seu lar envolvidos pelo seu sol, pelo seu café e pelo seu abraço. 

Parem um pouco e vejam o quanto o butoh, com mais saudade ou mais luto, está em nós.