domingo, 4 de junho de 2017

As crises do casal na família moderna




Então foram abertos os olhos de ambos, 
e conheceram que estavam nus


É sabido que a família percorre fases. As transições sempre são críticas. Percebi que a nudez cai bem como modelo de compreensão das crises da família moderna. Aqui vai um esboço didático, obviamente sujeito às variações das singularidades. 

A primeira crise de um casal é quando se vêem nus no cotidiano. Logo após o casamento, liberto dos pais, entregues a sua forma de gerir a casa que compartilham, tem que acordar os papéis de cada um no sistema que se inicia. 

A segunda crise é quando vêm os filhos pequenos, e o casal se reconhece nu de conhecimento para criá-los, e, no começo, os pequenos tremem nus em frente do ambiente agressivo. 

A terceira crise é quando os adolescentes desnudam as imperfeições dos pais. Descobrem que eles não são aquela autoridade toda que se tinha em mente quando criança. E os próprios pais, caindo em si, nus, questionam-se sobre a própria autoridade. Revêem radicalmente a forma de serem pais para os filhos. 

A quarta crise é quando chega a hora de os filhos voarem definitivamente. Criarem seu próprios ninhos. O mercado de trabalho cobra a presença, mas por vezes não dá oportunidade. As paixões cobram amores, por vezes cobram demais. Estariam os filhos com roupa suficiente para enfrentar o frio lá fora? O mundo é enorme, maior do que a casa. Os pais estão despidos do poder de fazer curvar o mundo aos pés dos filhos.

A quinta crise é quando todos os filhos saem de casa, os pais voltam a ficar nus no cotidiano. Toda uma consciência do envelhecimento corporal de repente assoma-se ao indivíduo. São os mesmos corpos nus do começo da história, à época, gozando de uma jovem beleza imortal, mas agora revelados na própria historicidade, desnudos sob o lençol do tempo.  

A sexta crise é quando a vida de um dos dois se desnuda por completo. O Espírito se despe. Quando se conseguiu percorrer todas estas fases até aqui, é a saudade que imita, com a leveza porosa da velhice, aquela ansiedade que se tem enquanto o amor se despia à sua frente no quarto jovem. Ansiedade que prenuncia o desnudamento final de quem ficou. 

- Eu espero o momento em que minha roupa se gaste, enfim, para me entregar de novo a ti. - fala do lado de cá. 
- Eu aguardo ansiosamente o último botão ceder. - responde do lado de lá. 

É assim que, às vezes, a morte não os separa. 

sábado, 3 de junho de 2017

O significado da tragédia para o Espiritismo



A maior parte da literatura erudita se curva para a tragédia. Raro é o romance ou a peça que promova um movimento tão grande de afetos na alma humana que não se valha de elementos trágicos. A comicidade, como irmã menor no mundo da estética, movimenta os humores do homem, mas não desce tão fundo (1). Como podemos conservar o estatuto da grandeza trágica, mantendo o otimismo espírita-cristão?

Alguns esclarecimentos preliminares. A tragédia não é a maldade, mas o irreconciliável. Não é a perdição ou a danação, mas a impossibilidade de salvação (2). Não porque o homem não mereça - pode até não merecer - mas antes disso, ele não foi feito para durar. Nada foi. Nada será a não ser Deus. Mesmo o Espírito, que até para mundividência da antiguidade clássica pode ser encarado como imortal, não dura, pois muda. E a mudança é a identidade do efêmero. 

Se por um lado isso pode dar uma brisa de alento, saber que qualquer sofrimento passa, em verdade aterroriza bem mais, porque junto com o que passa vai a identidade atual de tudo o que nos cerca, inclusive nós mesmos, nosso caro eu. A morte é trágica e sempre fecha o livro que vimos escrevendo (3)

As forças que geram e movimentam as histórias trágicas se originam do sobre-humano. Quando falamos que deuses, ou Deus, está por trás dessa ou daquela ação, é apenas a uma questão que nos referimos: o homem não a controla, não a pode controlar.

Por vezes a causa da força trágica está mesmo em uma instância superior a dos deuses, o que deu motivo para falar em destino. A mitologia grega enxergava deusas, ainda mais superioras, que teciam as histórias das gentes e dos deuses menores. Elas são cegas e cheias de artrose nas mãos que tecem. Na tradição cristã, os desígnios impenetráveis ou estão na razão de Deus, que não é menos impenetrável para o homem, ou estão na própria Razão de tudo, a que Deus (blasfêmia spinozista) se submete (4)

Jó é a tragédia judaica por excelência. Deus deixa Satanás esvaziar Jó até a última gota da humanidade deste. Aqueles que enxergam o messianismo judaico-cristão sempre como o concessor de vitórias neste mundo perdem o exemplo de todas as tragédias pelas quais passaram os heróis do antigo e do novo testamento. Jesus no topo delas (5)

A tragédia grega não é a inimiga das histórias de redenção cristã. Pelo contrário, ela é responsável pela maior parte do enredo. Forças que se escondem na vontade de Deus, no pecado dos pais e, no caso do Espiritismo, no passado do Espírito reencarnante, vão empurrando o herói trágico para o fim. Repito, o fim. 

É no herói trágico que devemos focar a atenção. Este, movido por não sei que força moral, a que os gregos chamavam coragem, e os cristãos denominaram amor, uma chama que resiste no peito apesar de tudo desmoronando, consegue chegar ao final da história, ainda que apenas com a última parte de seu corpo exangue no derradeiro momento. É como se o universo que tende a aniquilar tudo, a humilhar qualquer vida, a aplainar todos os seres, não fosse suficiente para derrotar o herói, pelo menos não até que o fim se faça presente em toda sua imponência (3)

Todos os elementos da tragédia grega estão presentes na cristã. Não é verdade que os heróis cristãos são menores por se pautarem em esperanças vãs. Tanto uns quanto os outros tem uma determinação que sorvem de um universo tão sobre-humano quanto as forças que os querem esmagados. Todavia, ouso dizer, essas forças rompem o círculo das Moiras (as tecelãs de destino), penetram no impenetrável do Deus cristão, fecundam o universo mortal e, apoteose!, provocam ressurreição. É essa palavra - ressurreição - que é o topo da arte cristã. As leis da implacável termodinâmica se estilhaçam, um mundo novo se ergue no horizonte. 

Se as tragédias gregas levavam a platéia até o abismo da alma humana, provocando a tal da catarse que Aristóteles reconheceu (1;2), é a ressurreição cristã que, saltando o abismo, leva a alma humana até Deus. A catarse movimenta os humores mais podres que transformam vida em doença. A ressurreição, sublimando-os, redime a doença em vida.  De forma muito incipiente algumas tragédias gregas davam essa noção, tentando finalizar as histórias com um deus que descia de uma máquina para solucionar o emaranhado trágico (Deus ex-machina). Na história do evangelho, o herói é o deus que se fez carne, viveu a tragédia humana, e salvou o homem - após o fim. 

Quando, no Espiritismo, dizemos que todos os homens ressuscitam, pois após a morte ressurgem em um corpo imortal, é uma associação fraca com o que Jesus viveu. Sim, todos os homens são capazes de ressuscitar, mas para isso, no sentido que os evangelhos narram, devemos conseguir deixar passar em nós toda doença, traição e morte que representa a condição humana em que estamos afogados. 

Ressuscitar, sim, mas a morte, antes.