domingo, 10 de dezembro de 2017

Apenas a revelação pode nos dar a verdade vital



E pela manhã cedo tornou para o templo, e todo o povo vinha ter com ele, e, assentando-se, os ensinava.
João 8:2
"E pela manhã cedo tornou para o templo, 
e todo o povo vinha ter com ele, 
e, assentando-se, 
os ensinava." 
(João 8:2)

Para começar, tenho que elucidar alguns pontos do título:

  • Por revelação quero dizer todo conhecimento que se manifesta fora da construção que a razão individual pode engendrar. 
  •  Por verdade vital quero dizer toda verdade que é essencial para conseguirmos viver diariamente. 
 
 A mediunidade é um exemplo de revelação, bem como o simples diálogo com alguém. Deus fala ao ser humano: diálogo e revelação. 

Cotidianamente não buscamos a verdade das coisas. Vivemos sem essa busca consciente. O que nos faz tomar as rédeas dessa busca é o estranhamento, o espanto, o assombro. Desde que mamãe me ensinou a escovar os dentes, nunca precisei parar para entender pormenorizadamente o mecanismo dessa ação, e a tenho como primeiro imperativo assim que acordo. Caso um acidente vascular venha danificar minha motricidade, se meu juízo crítico não for junto com a falha cerebral, a busca pela verdade da escovação dentária se impõe. 

Mesmo esse problema banal, o da escovação da primeira hora da manhã, se evidencia: uma verdade vital que necessita de uma revelação para ocorrer. Mamãe me revelou que a manutenção da saúde bucal passava pela escovação. Sem ela, ou qualquer contato social que tivesse me apontado esse dever, teria de ter reinventado essa arte. Aqui se apresenta uma das faces da revelação: ela poupa esforços quando se encarna na história humana.

Há, contudo, verdades vitais, de ordem cada vez mais superior, cujo alcance gradativamente escapa do sujeito isolado. São elas as de ordem ética e da beatitude. Entendendo a ordem ética a que nos permite viver em sociedade e as da ordem beatífica a que nos permite viver para Deus. Ser solidário às necessidades da civilização participa da primeira ordem e anuncia a segunda. Ser sincero e coerente com os próprios ideais, ainda que eles sejam ignorados pela sociedade, participa da segunda ordem, coroando a primeira. Saber ajoelhar-se diante do infinito e praticar as lições escondidas do amor está imerso na segunda ordem, permitindo a primeira ter sua parte nesta. Mas, como ascender ao conhecimento necessário para praticar estas duas ordens se fôssemos solitários? Impossível. 

Para termos acesso aos conhecimentos da ordem ética e da beatífica necessariamente é preciso de alheios que firam nossa consciência cotidiana, que cobrem respostas retas, que exijam posicionamentos oportunos. Estes outros são os reveladores dos desafios e, não raro, os doadores de respostas. Novamente, se fôssemos esperar sempre ter de construir as respostas apenas por nós mesmos, cada vida terminaria em projetos inacabados sem nenhum avanço global. Restaria ao maior ou menor grau de genialidade de cada um ser mais ou menos probo, mais ou menos santo que o vizinho radicalmente separado da minha aventura existencial.

Mesmo que tivéssemos vida o suficiente para tanto, para ter possibilidade de finalizar a questão da ética e da beatitude, há um limite da nossa consciência que impede a resposta final. Aqui é onde entra a metafísica. Apenas um ente que pertence ao além do lugar onde estamos é que pode nos iluminar o caminho a seguir. Sem esse estranho nada podemos fazer senão circular em torno de nossa idiotia. É o mesmo que um povo de uma ilha querer conhecer o mundo sem jamais sair dali. Trocam figurinhas do mesmo. Diante dessa limitação, há apenas dois movimentos: (1) desistir de procurar e imaginar que o futuro é construção pessoal de cada amanhecer, (2) abrir o ego para o novo que o alheio traz, não como uma possibilidade radicalmente diferente que inauguraria uma outra forma de existir na qual perderíamos tudo o que vimos sendo, mas como revelação de possibilidades ulteriores que iriam se somar aos nossos esforços na construção de um homem integral.  

As experiências de peregrinação, de rebanho, de plateia de pregadores, na segunda hipótese recebem novos ares de validade, e talvez mesmo de necessidade ontológica da condição humana. 

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Eficácia da prece



Referente a palestra dado ao dia 06 de dezembro de 2017 à Sociedade Espírita Irmãos do Caminho

É um tema difícil de ser trabalhado para mim, haja vista os grandes místicos que venho tendo acesso dizerem que é a atitude mais importante que um ser humano pode realizar a cada dia, e menos procurada, e a menos conquistada. Todavia, há algumas questões cotidianas que precisam de um pouco de esclarecimento. 

Quando uma mãe cristã pede a Deus que não deixe a chuva cair sobre a festa de sua filha, tão amorosamente preparada, essa prece é legítima ou seria uma mera expressão de um egoísmo impróprio para ser dirigido a Deus? 

Diante de Deus, me parece claro, para a concepção cristã, que importa menos a falta de horizonte com que essa mãe encara um fenômeno meteorológico de proporções regionais do que a atitude de conversa com o Pai pensando no amor pela filha. 

Os filósofos spinozistas diriam que Deus não privilegia ninguém. O que tem de acontecer acontece pela necessidade do Todo, e não para satisfazer tal ou tal ação. 

A chuva não cair sobre a festa seria apenas um fato, não uma concessão para uma prece eficaz. 

Se pensássemos assim para as doenças - que elas são necessidade - como explicar as curas milagrosas que Jesus operou nos indivíduos quando passou pela história humana? 

Muito embora nós espíritas tenhamos elaborado uma resposta que casa com a necessidade do momento de libertação daquela alma que recebeu a cura, não deixa de parecer evidente aos olhos do povo que Jesus era um deus (ou o Deus) saneando a matéria dos corpos corrompidos pelo pecado. 

A cura que Jesus provocava era uma já necessária consequência da história daquela alma ou uma graça do Mestre? Para entender os diversos ramos em que se dividiram os discípulos no tempo futuro, é preciso enxergar a profunda discrepância destes dois olhares. 

Se a cura já fizesse parte de um processo necessário, seria um fato,  não uma concessão para uma prece eficaz.

Poderíamos tentar enxergar da seguinte forma, conciliando as visões:

1. De fato temos processos que se desenrolam na natureza material e humana que são apenas consequências de um movimento cujo motivo fundamental, muitas vezes, é invisível para nossa consciência. Exemplo: a chuva, o saneamento de uma doença aguda simples. 

2. Deus, ou seu mais dileto representante, tem o poder de agilizar o processo sem interferir na harmonia do Todo. Exemplo: fazer parar a chuva, provocar uma cura. 

3. Essas atitudes que aparentemente perturbam a ordem cósmica, em verdade, provocam movimentos que reorganizam o Todo em uma conformação mais propícia para a salvação de muitos. Toda intervenção divina, embora dirigida para um filho em particular, parece ter um efeito ecológico. É como quando uma cura provoca a calma de uma família, a volta ou o reforço da fé de outros tantos, a motivação evangélica de mais alguns. 

A prece é eficaz? Sim ou não?!

Para responder de forma peremptória essa pergunta tem que se olhar não para as curas de Jesus, mas para o seu sofrimento final. 

Jesus, que parecia a encarnação da resposta de Deus frente aos clamores de Israel, não consegue livrar a si mesmo do sofrimento. Içado ao madeiro em cruz, começa a cantar baixinho o salmo dos antigos: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" - e desfalece.

Isto era uma prece. Não era um pedido de benesses materiais, não era um agradecimento pela concessão de qualquer benesse, nem mesmo uma adoração. Era a constatação de uma solidão, de um vazio, de uma ausência de Deus ao seu lado. Esta canção que começa nestes termos - Jesus não a cantou por inteiro - ela se aprofunda na descrição das desgraças que o cercam, mas sobe de tom profetizando que o sofrimento do justo se converterá na salvação de muitos. O salmo previa o movimento de salvação das almas mediante a ressurreição do justo ferido.

E apesar disso, Jesus morre, não sem antes perdoar os carrascos. Para, então, ressuscitar ao terceiro dia. 

Que significado tem estas imagens? Que a verdadeira prece não espera a modificação do entorno, mas a ressurreição da própria alma para que o entorno pungente não mais nos alcance. 

Se a chuva cai e a festa ensopa, dancemos na chuva. Se a doença chega aos ossos, e o coração feito cera derrete-se pelas entranhas, exultemos, o Espírito se libertará dançando em chuvas de bênçãos, acolhidos por um Pai no infinito. 

Tentar modificar a natureza ao nosso redor na busca de um paraíso terrestre é uma tarefa bem mais fácil do que provocar a santificação da vida em nós. 

A que resultado gostaríamos que a eficácia da prece fosse dirigida?

Eis o áudio da palestra:


 




 

domingo, 3 de dezembro de 2017

Pesquisas espíritas no contexto acadêmico cearense



Dei esta palestra falando sobre o que aprendi com um grupo do qual me desliguei porque a vida me forçava prioridades familiares, e também porque minha linha de estudo flutuava para outra direção. 

Contudo, para não ser tão ingrato, deixei bem claro o quanto o que  iria falar se devia à professora Ângela Linhares. Não sei se ela concordaria com esta minha sistematização de seu pensamento, até porque ela não se sente dona de um pensamento para ser sistematizado. Todavia, as conversas que tínhamos por horas na busca de me iluminar formas de pensar espiritamente a vida gerou essa busca de síntese que vocês poderão ouvir no áudio que compartilho mais adiante. 

O que aprendi?

Quando pensamos em pesquisa, estamos acostumados com estatísticas e estudos de caso-controle. Temos de provar a relação causal de um fenômeno sobre outro, ou a eficiência disso e daquilo. 

Ângela Linhares me ensinou que nada disso pode acontecer sem antes nos reconhecermos como sujeitos apaixonados, movidos por ânsias e encantamentos. Só na medida que nos situamos na própria vida, fazendo encarnar o eu-pesquisador, é que podemos passar a tentar a objetivar algum olhar. 

Os números são importantes, mas apenas como início. O grosso do que podemos captar no campo do estudo está nas falas das pessoas, cujo peso tem uma singularidade sem par. Tanto melhor se pudermos fazer com que elas vivam o que pesquisamos, participem conosco do movimento de construção de todo o castelo teórico. 

Não sei se podemos voltar a fazer ciência nos moldes da física clássica, objeto de estudo separado de um sujeito-observador inerte, depois que descobrimos na história da epistemologia como verdadeiramente podemos estudar culturas. 

Os sociólogos e os antropólogos clássicos ainda quiseram objetivar a cultura das pessoas reduzindo-as a estruturas. Mas, Allan Kardec se abriu de tal modo que deixou os próprios Espíritos guiarem seus trabalhos. É esse comportamento que buscávamos ao fazer estudos com a Ângela.  

Outra questão era não cindir a realidade. Sempre se esforçar por enxergar as coisas em sua complexidade. Era como se tivéssemos que ver espírito e matéria ocupando o mesmo espaço. Nunca dicotomizar. Sempre era isso e aquilo, nada de isso ou aquilo, isso e não aquilo. Como este isso e aquele aquilo podem dialogar e serem enxergados como parte de um mesmo todo. 

Nossos olhos tinham de estar preparados para ver o grande no pequeno. Tudo em qualquer bagatela. Por que haveria de ser diferente? Cada átomo foi criado por Deus, e nele poderia o Criador se revelar. Do átomo ao arcanjo, no mesmo átimo! Não era um exercício de enxergar o que viria depois, mas o que estava ali, agora, por inteiro. 

Essa visão, eu digo, é a dor amor. Quem disse que os apaixonados se enganam a todo momento participa do paradigma antigo. Aqui, o amor é a condição primeira e o coroamento. Começamos apaixonados pelo estudo, perdemo-nos no mar revolto da realidade, peregrinamos para o retorno do amor. O final do trabalho é uma visão redimida, serena, pacífica. Não da paz do mar morto, mas da inteireza. 

Este não é outro método que não o que Allan Kardec usou para codificar a doutrina. Um pouco mais poético depois de Chico Xavier, um pouco mais trabalhado no que tange a conscienciologia depois de Husserl. 

Poucos são os espíritas que enxergam a construção da doutrina assim. Tive o prazer de vislumbrar. Venho percorrendo estudos que vão tentando assimilar mais e melhor tudo o que vivenciei. Quem sabe um dia não lanço uma pesquisa mais robusta e madura com isso tudo.  




terça-feira, 28 de novembro de 2017

Reflexão espírita em "O Justiceiro" da Marvel



(Contém spoiler)

O Justiceiro conta a história de um fuzileiro naval, Frank Castle, que vê sua família morta em um ataque terrorista no parque. Com o tempo ele descobre que o ataque fora direcionado para ele. Como não acredita na justiça dos homens, em questão de julgamento e prisão, decide, ele mesmo, sair punindo - com morte - todos os criminosos envolvidos com a chacina. 

Ao final da primeira temporada que leva o seu nome, parceria com Netflix, Castle está sendo torturado pelo maior responsável pela morte dos seus. Quanto mais seu corpo é surrado mais ele delira vendo sua amada em pensamentos eróticos. Escapa da dor pelo prazer. 

Em Odisséia, de Homero, o épico grego que originou boa parte da mentalidade dos antigos, a grande escolha que reflete o espírito filosófico maior é a de Odisseu entre o amor da ninfa Calipso, com sua promessa de juventude eterna, e a volta para seu reino de Ítaca, onde iria, necessariamente, envelhecer e morrer ao lado da rainha Penélope e do filho Telêmaco. 

A escolha de Odisseu foi envelhecer e morrer. Ao contrário do que interpretam os românticos, não foi por causa do amor-paixão para com Penélope, mas porque é da sabedoria grega assumir o seu lugar no cosmos: o de mortal, o de senescente, o de membro de uma polis. Assim se alegra a Zeus.

Frank Castle, acariciado em sua alma pela amada já morta e vendo-a chamá-lo para se unir à ela no reino das sombras, decide por permanecer entre os vivos e terminar seu projeto de justiça. Recobra suas forças (com a ajuda de alguns artifícios da história, assim como Odisseu fora ajudado por Atenas) e devolve suas raízes para sua história de homem mortal, senescente e sedento de justiça. 

O Justiceiro é um seriado violento? Em demasia! Mas, se olharmos pelo lado simbólico das imagens, o convite heróico dessa história é o de não esmorecermos na busca da justiça (quase toda tragédia faz este convite, vide Antígona, Macbeth), o de não trairmos o movimento justo pelo qual bate o nosso coração, independente do quão sedutora seja a oferta que nos tente fazer desistir. 

Veja que o Justiceiro guarda o mesmo senso de honra e o mesmo peso de certo destino nas costas que os heróis trágicos. Se substituirmos a necessidade de matar os maus pelo imperativo de não ceder ao mal, ambas estas lutas se mostram cruentas e requerem uma força trágico-grandiloquente para vencê-las. Resistir até o fim contra o que for de maligno sempre foi a principal mensagem cristã. A ressurreição, o coroamento.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Para falar com Deus: símbolos e ritos



Venho repensando os ritos e a linguagem simbólica que se usa todo o tempo na religião. Fui criado em um racionalismo que rejeitava esses artifícios como superstição. Descubro que não são.

A única forma de falarmos sobre (ou com) a realidade é através de intermediários. A mínima realidade que nos transcenda precisa já de um intermediário (leia-se médium). Tudo, em verdade, está mais ou menos revestido por um instrumento de manifestação que possibilita a comunicação de outro, comunicação com outro. 

Nós espíritas estamos acostumados com a mediunidade que intermedeia a comunicação do Espírito desencarnado através de um corpo carnal dotado de recursos especiais. No indivíduo, o próprio Espírito manipula o corpo por intermédio do perispírito. Por fim, dialogamos por intermédio da linguagem verbal e não-verbal.

Recapitulemos as tríades:

Espírito desencarnado - médium - Espírito encarnado
Espírito - perispírito - corpo
Eu - linguagem - Outro

Da mesma forma:

Sagrado - símbolos e ritos - profano

Todos seguem mais ou menos esse padrão:

Transcendência - intermediário - Imanência.

Nas elaborações poéticas, tanto da Grécia antiga quanto dos Hebreus, entendia-se que não se poderia ver qualquer deus, ou o Deus, em seu esplendor, em sua totalidade. Qualquer manifestação divina se dava por uma imagem: um touro, por exemplo, para Zeus, a sarça ardente, para Deus.

Daí, entender, agora, que símbolos e ritos não serem mais do que a condição necessária para ultrapassarmos, ainda que na insuficiência intransponível, nossa limitação de lidar com o divino. A realidade absoluta é incomunicável ou inapreensível para nós relativos*. Daí constantemente chegarmos à esta tríade que os místicos vivenciam:

Verdade - silêncio - Sensciência

É assim que consigo entender a Santíssima Trindade:

Deus-Pai - Sua ação no mundo - Jesus.

É assim que venho sentindo Deus:

Eu de joelhos para Ele.

domingo, 22 de outubro de 2017

De quem?

"De quem é esta efígie e esta inscrição?". Assim se expressa Jesus para orientar que se dê a César o que é de César. Mas, ele deixa implícito outra pergunta: onde está a efígie e a inscrição de Deus?

Onde?

sábado, 21 de outubro de 2017

Jesus menino sobre as águas

-Venha, José, venha ver!
- O que foi, Maria? Estou um pouco ocupado. 
- É Jesus. 
- O que ele fez?
- O menino foi ao rio e está nele. 
- Por Deus! Mas, ainda não o ensinei a nadar. 
- É isso que quero que veja, homem. Venha logo!

(José se assusta. Esfrega os olhos, foca a visão, aproxima o rosto. Esfrega os olhos de novo).

- Mulher - fala em tom baixo - chame logo o menino para dentro. Peça para que não faça isso na frente de ninguém. 
- Por que, José? 
- Guarda silêncio destas coisas, Maria. É pela vida dele que peço. Vá, chame a criança. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Um abismo entre nós e vós

MAS NA BÍBLIA DIZ, contra as comunicações mediúnicas, que "há um abismo entre nós e vós" (Lc 16:26). 

- Não. Nessa parábola, o abismo está entre o lugar de consolo em que Abraão e Lázaro estão e o de tormento do homem rico. Mas, quando o rico pediu para que Lázaro orientasse os seus familiares, Abraão, muito sabiamente, disse que o que eles precisavam não era de uma mediúnica, mas do estudo das muitas mediúnicas que já haviam se canonizado entre o povo hebreu.

Meu pai morreu de forma dolorosa



Amigo: Allan, meu pai faleceu há 4 meses e, assim que ele partiu, eu me interessei em ler o Livro dos Espíritos, mas comecei a ter medo, porque eu carregava ainda um peso de pensar que eu podia ter feito mais por ele, que meio que já passou. Hoje em dia, a minha angústia é saber se ele já está bem, porque ele morreu num processo muito doloroso. Foram quase 5 anos lutando contra um mieloma múltiplo, e os últimos meses foram muito sofridos. Existe alguma recomendação quanto a esperar um certo tempo pra obter notícias dele? Eu li em algum lugar que seria bom esperar um tempo até o espírito dele estar em melhores condições, visto que o processo de recuperação ia demorar mais, por ele ter sofrido muito com a doença. Abraço!

Allan: Por Partes:
1. "Eu podia ter feito mais por ele". Não há pontas soltas no universo. Deus fez as coisas de tal forma que sempre há uma chance de se acabar o que não se terminou. Se não nesta vida, depois dela.
2. "... se ele já está bem, porque ele morreu num processo muito doloroso." As mortes que deixam o indivíduo mais perturbado são as por acidente. Mortes que vão se processando lentamente, como as por câncer, tem, ao menos, a "virtude" de preparar o Espírito para o desenlace. A aceitação, que é o coroamento do processo de morte e morrer, é o sentimento que mais permite a abertura da alma para Deus. A revolta, o contrário. Claro que a pessoa, neste processo, migra de forma muito instável entre vários sentimentos. De todo modo, mesmo se seu pai tiver falecido com o coração pesado e cheio de revolta contra a existência, somos, todos nós, cercados por Espíritos bons que nos auxiliam o retorno para Deus. "Retornar para Deus" pode ser entendido, na perspectiva da experiência individual, como o retorno para um olhar ameno e otimista da vida, entendendo que tudo tem um motivo, nada está desgovernado, e que somos regidos por leis justas, boas e amorosas. É sentir-se acolhido, de novo, por um Pai.
3. "Existe alguma recomendação quanto a esperar um certo tempo pra obter notícias dele?". Se ele tiver morrido em revolta, as primeiras comunicações com ele devem ser a prece. A prece dirigida para ele e para o anjo-da-guarda dele é um tipo de comunicação que você não espera resposta. É um tipo de comunicação que é uma doação. Você doa os seus sentimentos mais nobres para ajudar na recuperação dele. Isso vai ajudá-lo a recobrar a consciência, e iluminá-la o mais rápido possível para que ele possa finalmente aproveitar essa nova fase da vida. De todo modo, tentar uma comunicação mediúnica não é proibido. Se ele não estiver em condições de se comunicar, e você tentar a comunicação em um lugar que mantém uma atividade nobre de exercício da caridade em todos os sentidos, acorrerá ao seu chamado, no tempo oportuno, algum Espírito bom que estiver com notícias dele. "Evangelho" significa isso: Boa Nova, Notícias Boas. Nessa palavra tem o prefixo EU, de coisa boa ou verdadeira, e a raiz ANGELO, de mensagem. No caso da passagem de Cristo na Terra, Ele, em Si, era a Notícia Boa encarnada. Mas, no caso da mediunidade, não deixa de ser um canal aberto para muitas notícias boas menores. Acreditamos, os espíritas, que a mediunidade é uma perpétua lembrança do que Jesus veio fundar na Terra: a certeza de um amor que dura, individualmente, para além da morte. Para isso é que as boas novas nunca deixam de ser transmitidas. (Se o medo de ler o Livro dos Espíritos já passou, volte a leitura, e me tenha como um parceiro para partilhar dúvidas).

Amigo: Queria dizer que só o que tu me disse já tirou muito da ansiedade que eu estava. Valeu, Allan! Abraço!

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Quero falar com minha avó que já morreu



Uma leitora do blog me questiona se seria possível se comunicar com sua avó já falecida. Segue o diálogo:

Ela: Oi, Allan, queria tirar uma dúvida contigo. Minha avó faleceu há 8 anos. Eu era muito apegada à ela. De toda a família, a única que ainda sonha com ela sou eu. Recentemente faleceu um tio e anda tendo algumas confusões familiares sobre herança. Queria muito tentar uma comunicação com minha avó. Nem sei se seria possível. Queria saber como ela está, algo assim. Venho de uma formação bem católica e tudo isso é desconhecido para mim.


Allan: Primeiro, queria agradecer por você ter de alguma forma confiado em mim para um assunto tão pessoal.
Seguinte, imortalidade da alma é a base. Ninguém morre, né? Acho que isso você acredita. O que o catolicismo não acredita ou abomina é a possibilidade de se comunicar com o que eles chamam de almas do purgatório. Mas, o Espiritismo mostrou que toda e qualquer alma que  esteja no plano espiritual tem condições de se comunicar com os que estão "na carne" (encarnados). Basta pensar que quando morremos não mudamos em quase nada. Persistem os mesmos desejos, raivas, faltas, sonhos, saudades, etc. Então, pra sua pergunta se seria bom para sua avó se comunicar com você, pergunte se seria bom ela falar com você aqui. Se sim, seria.
Contudo, é muito importante, quando estamos do outro lado, deixar de se preocupar com as coisas daqui. Passamos a ter outras necessidades de crescimento. Todavia, nem todos conseguem se desprender. Ficam preocupados com o que foi deixado para trás e não conseguem focar nas novas tarefas.
Um conjunto de Espíritos amigos (entre eles o Anjo-da-guarda) estão ao redor da pessoa tentando lhe proporcionar uma ótima vida no plano espiritual. Não é proibido você querer se comunicar com sua avó. Talvez seus sonhos sejam ela se comunicando já com você. O que pode acontecer em uma mediúnica é: ela demorar pra se comunicar, pois não recebeu permissão ainda; se comunicar um espírito amigo dela, que pode estar querendo poupá-la, pois ela não sabe o que lhe falar para "resolver" o problema ou lhe consolar; ela se comunicar e propor nortes importantes para o que vocês estão vivendo; ela se mostrar aflita com a situação e demonstrar isso na própria comunicação. Entre outras várias possibilidades.
Me permita uma dica para um assunto tão delicado. Não espere muito de uma comunicação mediúnica em termos de ela lhe revelar uma solução para os problemas. Vá com o espírito de querer reencontrar sua avó e matar a saudade com algo mais palpável que um sonho. A mediunidade foi feita para que tenhamos fé renovada de que a vida não acaba, a pessoa não se dilui na eternidade, e o amor tem motivos de sobra para continuar existindo. Só isso*. Querer respostas para a vida presente, das preocupações da vida presente, pode ser uma grande frustração.


Ela: Aceitei bem a morte da vovó, apesar da saudade. Mas, ocorrem tantas coisas em sonhos que tenho com a vovó, que me deu vontade de ver melhor isso. Entendi tudo! O que mais queria era sentir que ela está bem, que está feliz, que recebeu meu tio lá, que ela viu meus gêmeos. Seria mais isso!
Outro dia, li uma carta mediúnica de alguém que uma amiga conhecia. O que me chamou a atenção foi o português tão rebuscado. Minha avó não falaria assim com tão pouco estudo. A comunicação seria, então, como ela fazia aqui? Um dia antes de morrer, ela me disse: "eu te amo tanto, você vai ser mais feliz do que pensa, por tudo que fez por mim!" Ela teve morte súbita no outro dia! Ou seja, não esperávamos e nem ela. Me pareceu muito um recado.

Allan: Sobre o português rebuscado, há algumas questões bem mais complexas sobre isso. Por exemplo, a mediunidade, que é o dom de ser intermediário para os desencarnados, não é algo igual para todos, existem graus. Existem aqueles médiuns que deixam passar a mensagem como se ele fosse apenas um gravador, e existem outros que misturam coisas da própria personalidade na comunicação. O médium sente a presença, às vezes chega a enxergar o Espírito, mas não permite que a mensagem seja passada com fidelidade absoluta. Nestes casos, você encontra as marcas do médium na mensagem que ele passa. É como se estivesse passando um recado de ter ouvido falar. Aí passa na linguagem dele, porém você reconhece que deve ter sido a pessoa que disse pois há informações muito particulares que ele não poderia saber.
E a respeito do recado que ela lhe deu, às vezes, perto do Espírito se libertar do corpo, ainda que este não esteja moribundo, abre-se uma lucidez não usual. É como se o peso dos sentidos da carne diminuísse, deixando acontecer um lapso de eternidade na consciência da pessoa. Daí, as profecias podem vir à tona, ainda que seja revestida de uma fala de carinho profundo. Aliás, tanto melhor quando vem assim.


Ela: Entendi. Bem interessante tudo isso! Deus existe!


Dançando com os mortos ou Vovó em mim


Um amigo dado ao estudo de muitas culturas para além da nossa se encantou pelo butoh


... é uma dança que surgiu no Japão pós-guerra e ganhou o mundo na década de 1970. Criada por Tatsumi Hijikata na década de 1950

Ela é a filha de um passado de respeito religioso aos antepassados com um presente (o pós-guerra) cheio de mortos. A técnica da dança pede para que o ator se deixe assumir por toda a morte que nos circunda. É como se cada movimento fosse guiado por um passo das sombras. 

Quando você vê a coisa acontecendo, parece de fato bem sombrio. Não era para menos, a carnificina foi incomensurável. Há um luto profundo encarnado na dança. Parece que pega nosso coração atravessando o esterno e o acocha. 

Como o princípio desta dança é universal - a vida está cercada por morte, animada uma pela outra - fiquei pensando o quanto estamos dançando no nosso cotidiano, e percebi particularmente vovó ao acordar. 

Quase todos os dias, tomo um remédio, acendo o fogo, coloco água na chaleira, preparo o filtro do café, coo o café para a garrafa. Preparo o leite do filho mais velho, e acolho o mais novo nos braços descendo com a mãe dele pelas escadas. 

Todos os dias, vovó deixava o sol entrar em casa, acendia a lareira, colocava uma pequena panela velha no fogo, e o cheiro de café inundava a casa. As tapiocas esperavam os netos à mesa, e nós, pouco tempo depois, invadíamos seu lar envolvidos pelo seu sol, pelo seu café e pelo seu abraço. 

Parem um pouco e vejam o quanto o butoh, com mais saudade ou mais luto, está em nós.


sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A insuportável transparência dos outros



Estive pensando sobre a opacidade das pessoas depois de ter vivido uma experiência grupal hoje em que uns choraram aos outros suas dores íntimas. Foi um momento catártico que teve sua razão de existir. Mas, seria universalizável? Seria desejável absoluta e infinitamente?

Acredito que não. A bíblia nos adverte que a visão de Deus cega o homem, talvez mais do que isso, fulmina-o. A mitologia grega não dizia diferente a respeito de um deus menor que Javé como era o caso de Zeus. Menor porque Zeus não representava a onisciência e a onipotência na mesma unidade. 

Pensar em Deus se manifestando completamente a nós é pensar em a Onisciência e a Onipotência se revelando de súbito, sem máscaras, sem intermediários. Ver a Onisciência sem máscaras seria o meu saber inteligir a Onisciência. Ver a Onipotência sem máscaras seria a minha vontade se confrontar com a Onipotência. A loucura e a humilhação seriam as conseqüências imediatas no primeiro átimo de contato com qualquer átomo desta experiência. 

Não creio que fosse diferente entre os seres humanos. Se tivéssemos a oportunidade de contemplar por um instante cada indivíduo em toda a sua nudez, cada curva e cada cicatriz deveria se me apresentar com a sua história no mesmo tempo. Tudo seria revelado: o que ele foi, o que vem sendo, suas descontinuidades, projetos soltos, tudo isso em sua simples presença.

Nem nós mesmos suportaríamos esta visão no espelho. Deformidade, aberração, protuberâncias e cavidades. Tudo o que deixa o outro substancialmente diferente de mim exposto em um estalo. O mais natural seria ficar cego à tudo. O outro, assim como Deus, carrega um assombroso infinito incógnito. Deus, no perfeito. O outro, na diferença radical. 

Quando escutei, então, no círculo de desabafo que experienciei hoje, que o mundo poderia ser bem melhor se nos revelássemos mais no que temos de bom, me perguntei por que não no que temos de ruim. No mesmo caminho, por que não nos despirmos por completo? E veio, por fim, esta reflexão dantesca que ora se apresenta nesta página. 

Leibniz tinha razão em sua monadologia. A única forma que temos de chegar ao outro é através de um outro que consiga atravessar a todos, sem se ferir. Apenas o Absoluto e o Fundamento de tudo tem o poder de fazer com que nos comuniquemos em paz. Ele nos protege uns das imagens nuas vizinhas. 

O tempo, nossa condição, faz cair as roupas aos poucos, graças à Deus! Dá tempo de segurar a peça que se desmonta a fim de não ferir o próximo. Revelar nem sempre é a boa opção. Esconder é tão sábio quanto. O antídoto de tudo isso se chama tempo oportuno até o dia em que tivermos sentidos robustos o suficiente para mirar a realidade inteira face-a-face. 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Mundo líquido segundo o Evangelho



(Reflexão engendrada por ocasião de palestra proferida ao dia 27 de setembro de 2017 acerca do tema "A coragem da fé", presente em O Evangelho Segundo o Espiritismo)

E o barco estava já no meio do mar, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário; Mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, andando por cima do mar. E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: É um fantasma. E gritaram com medo. Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: Tende bom ânimo, sou eu, não temais. E respondeu-lhe Pedro, e disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas. E ele disse: Vem. E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, sentindo o vento forte, teve medo; e, começando a ir para o fundo, clamou, dizendo: Senhor, salva-me! E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:24-31)

 O primeiro elemento que me chama a atenção nesta passagem são as águas em meio ao vento contrário e o açoite das ondas. Andar sobre elas é ainda mais assustador do que ver um fantasma. Todavia, Pedro se atreve. 

Dizem os biólogos que o mundo nos acolhe líquido ao ventre materno e, por muito tempo, permanece líquido para nossa compreensão. 

Quando finalmente o entendemos sólido, vêm os filósofos e sociólogos, e dizem que permanece líquido. É o apeiron de Anaximandro, mas também o mundo líquido de Bauman, por motivos diferentes. O primeiro entendia que nosso gueto de existência está circundado por um sem fim de caos inapreensível, de onde tudo deve ter se originado. O segundo entende que a concepção mais ou menos rochosa da realidade que a cosmologia dos antigos e a teologia dos medievais nos davam se liquefez nestes tempos pós-modernos. As amizades e os amores não possuem mais aquela eternidade de antes, mas se desfazem com qualquer vento contrário e açoite de uma onda qualquer. 

Essa concepção é a visão da primeira metade da cena evangélica que expus. O temível mundo das águas. Mas, há algo além do vapor do mar. O que é? Jesus, seu convite e sua postura de acolhimento. 

Sabe-se que Jesus era um homem de tal encanto e magnetismo que sua presença acalmava nossos mares revoltos. De outro modo, sua mesma presença tinha o poder de provocar morte nas pessoas: do que elas vinham sendo para, então, ressuscitarem no que elas estavam destinadas a ser. Isso é o que demos para chamar, na tradição cristã, de conversão

De volta às águas, lembramos que na imagem veterotestamentária, tudo antes de ser criado por Deus era apenas água. E o Senhor pairava sobre elas.

A associação me parece clara. A cena em que Jesus paira sobre as águas reproduz solenemente o ato criador do mundo. Pedro teme e cai. O fundo das águas se mistura com sua morte iminente. Jesus toma-o pela mão e o salva, o que quer dizer uma nova criação para Pedro. Se antes ele ainda não existia em Cristo, desta vez pode se considerar batizado para a nova vida. 

Isso não impede que Pedro venha a experimentar a morte do cristão em outras passagens, particularmente quando nega o rabi. Mas, o cristão não é reconhecido pela sua perfeição, mas pelo jeito de sua caminhada, buscando pairar sobre as sólidas palavras de Cristo, ainda que em passos vacilantes. 

Ao mundo líquido de Bauman ou ao apeiron de Anaximandro, ou ainda, ao universo da termodinâmica que se derreterá em caos após toda a energia ter se dissipado em calor, sobreviverá o Espírito de cada pessoa que Deus criou. Tão logo qualquer corpo submergir nas águas primárias da criação, é a mão de Deus que resgatará o homem para continuar sua escalada em outros corpos, planetas, universos criados. 

O mundo vem precisando de Cristo sobre as águas. E enxergá-lo perto de nós com sua mão estendida, acredito ser a grande resposta do mal-estar do milênio. 




Figura: De Amédée VarinLe Christ marchant sur la mer. Disponível em http://www.culture.gouv.fr/GOUPIL/IMAGES/101_Christ_sur_eau.jpg (Gravures et eaux fortes)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O método do discurso demoníaco



A primeira questão que se levanta é se existe um discurso demoníaco. Sim. Ainda que não se acredite em demônio na acepção que se toma no senso comum do termo, o discurso demoníaco é algo vastamente estudado por várias tradições, particularmente a cristã.

O discurso demoníaco consiste naquele que quer lhe afastar de Deus. 

Se acreditamos que Deus não é único e que depende da religião que o enxerga, o discurso demoníaco é aquele que contradiz a forma de enxergar o seu deus. Sendo Deus único, e as religiões apenas O enxergam por diferentes ângulos, o discurso demoníaco absoluto seria o que apresenta uma mentira fundamental sobre o caminho que Deus nos prepara. 

De todo modo, há um certo método do discurso demoníaco se apresentar. Dos mais efetivos, podemos resumir em alguns passos:

1. Descrever a realidade na verdade dela, muitas vezes evidenciando uma sobriedade a que nossa visão cotidiana não está acostumada; 
2. Apontar nesta realidade as lacunas, as falhas, as faltas que de fato existem.

Essa é a etapa de sedução do ouvinte. É quando o discurso aponta o que há de verdade e que reconhecemos como tal, mas aprofundando análises que nos levam a aderir ao discurso. 

3. Tendo conseguido levar o ouvinte ao aprofundamento da análise, começar a desvirtuá-la, semeando mentiras que passam despercebidas pelo incauto;

O nível superficial da realidade é fácil de ser descrito com certa precisão por uma mente inteligente, fazendo-se facilmente compreendida pelo interlocutor. Contudo, quando se guia o outro para as profundezas de qualquer análise, as ligações entre os fatos tornam-se vaporosas, quebradiças, frágeis, e apenas alguém seduzido no discurso para comprar o que está sendo vendido. 

4. A partir destas profundezas, agigantar as falhas da realidade em que se está inserido até o ponto de fazer o ouvinte sentir-se desapegado, por desprezo, da sua vizinhança. 

Esse é o momento crucial para este discurso, pois tem como que sua presa isolada, tanto melhor se todos os fatores de proteção e os amigos que poderiam lhe devolver a sobriedade tiverem sido desacreditados. 

5. Propor, a partir de então, uma nova realidade que se apresenta como revolucionária, fazendo com que o ouvinte seja, por assim dizer, iniciado nas novidades deste mundo recém-descoberto. Cercá-lo de outras relações generosas que apaziguem o desconforto da ruptura com a sua antiga forma de ver. 

Envolvido por esta teia astuciosamente urdida, a pessoa passa a se permitir ações que fogem completamente da sua forma de ser, podendo sacrificar a própria vida. A consciência e o senso moral se anestesiam, lançando-a para um cipoal que há muito custo, com bastante intervenção externa, poderá se desvencilhar. 

É desse modo, por causa dos múltiplos discursos demoníacos que sussurram em todos os lugares, que surge a necessidade do espírito crítico e da busca escolástica de entender qual a vontade de Deus, que verdade pode haver no mundo, que tesouros primordiais se escondem na consciência, que certezas para o senso moral. Deus, verdade, consciência e senso moral são os principais alvos de qualquer discurso demoníaco. Relativizá-los é o trunfo. 

sábado, 23 de setembro de 2017

Médium João de Deus, Lair Ribeiro e a morte de Marcelo Rezende



"Médium João de Deus e médico sofrem acusações após morte de Marcelo Rezende" diz a notícia que pode ser conferida clicando aqui

Os repórteres registram que o médium João de Deus teria revelado (mediunicamente?) Lair Ribeiro como a cura para o câncer que matava Marcelo Rezende, famoso apresentador de um programa de TV. 

Por que se deve tomar cuidado com revelações bombásticas de médiuns?

Qualquer espírita que leu qualquer livro introdutório de Allan Kardec responde isso brincando.

Médiuns não tem acesso a verdades absolutas. O mundo dos Espíritos a que os médiuns têm acesso é composto por um sem fim de habitantes que podem emitir revelações. Estes Espíritos são de todas as classes, desde os mais sábios aos mais embusteiros. Kardec havia pedido cautela com qualquer revelação. "Rejeitar nove verdades a aceitar uma mentira", aconselhava. 

Nenhum médium pode se gabar de ser imune a espíritos enganadores. Ninguém é blindado contra a sugestão de mentirosos. Não há pessoa completamente transparente a si mesma. A quantidade de fragilidades presentes em nossa alma que podem ser utilizadas contra nós por qualquer um não tem conta. Não se pode receber dos médiuns qualquer informação que, pretensamente, venha do mundo espiritual sem análise. 

Isso não quer dizer que a mediunidade não exista. Falhas de um fenômeno não provam a total inexistência do mesmo. Provam apenas que o fenômeno tem falhas. No caso aqui, a verdade que cai por terra é: "é confiável qualquer informação que venha de um médium confiável?". Resposta: não. Um médium de boa índole e que se vigie muito acaba por se tornar um excelente intermediário de Espíritos bons, mas nada impede que Espíritos dissimulados também se comuniquem. 

O que acontece com as pessoas, particularmente as fragilizadas pela doença e sedentas de esperança, é que se apegam, como a uma tábua em alto mar, aos que trazem nos olhos certezas de salvação. É uma situação complicada, porque o milagre depende dessa entrega, o que implica certa anulação do espírito crítico. Porém, há outros fatores que geralmente desconsideramos: o tempo de Deus e o que para Deus é vida.  

O sofrimento tem um tempo de acontecer no ser humano que é o da sua redenção. Sempre está de mãos dadas com um processo de amadurecimento do Espírito. Seu fim é a aquisição do aprendizado. Os espíritas, acreditamos que as curas de Jesus aconteciam na clarividência do momento certo de fazê-las nascer. Como um parteiro respeita o momento de tirar a criança.  

E o fato de viver mais um pouco ou morrer são dois caminhos indiferentes para Deus, já que para Ele tudo é vida. Sendo o tempo uma ilusão para a eternidade, viver mais um pouco ou morrer, e portanto continuar vivendo de outro modo, com a busca de uma consciência em outro nível, são apenas vivências diferentes aos olhos de Deus. 

Pense nisso, se você estiver diante de um médium, e um Espírito "de luz" disser a este que não se preocupe pois você vai viver ou sobreviver ou se curar do mal que te aflige, não será uma mentira se morrer, será apenas uma outra verdade que você não estava preparado para entender. Faltava o complemento da revelação, pois mesmo morto, estará vivo, redivivo, e em algum tempo liberto

Em outras palavras: se você é uma pessoa apegada no aqui e agora, não confie em pessoas que tem o ponto de vista da eternidade, a frustração é certa. 





quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Quem sou eu verdadeiramente?



Por que o eu descrito nas Confissões de Santo Agostinho (~400 d.C) é mais verdadeiro do que o eu pensado por Descartes em seu Discurso sobre o método (1637)? De outro modo, por que o eu que se confessa é mais real do que o eu que se pensa?

O eu descrito por Santo Agostinho vai se mostrando na própria biografia, reconhecendo a impossibilidade de ser fundamento de si mesmo, aceitando a primazia do entorno em relação a si, entendo-se projeto e imperfeição caminhante. Este eu reconhece seus afetos, suas relações, suas derrocadas, e seus pontos de virada, em uma palavra, sua navegação na vida, ou, em uma palavra mesmo, a vida. 

A partir desta reflexão, dois respeitos surgem de forma irredutível: a Deus, como necessidade primeira da existência; ao outro, como impossibilidade de ser extinguido. O sagrado e a ética dão-se as mãos na abertura fundamental do eu para o mundo. 

O eu cartesiano é provado a partir de um conjunto de refutações que vão deixando de lado tudo o que dá suporte a ele. Um eu assim, hipoteticamente cogitado, é um fantasma na pior acepção do termo. É vaporoso, impalpável, imaterial. Não há possibilidade de atuação na vida. Desconsiderando os outros, mas também suas possibilidades de falha, tão pouco tem carne para acertar qualquer coisa. Tamanho foi o labirinto em que Descartes se meteu, que após todo o esforço da dúvida hiperbólica, o eu a que chegou como fundamento da existência era um incapaz de se comunicar com tudo o mais, necessitando aceitar dogmaticamente a necessidade de Deus para lhe salvar deste isolamento total (ontológico). 

Conseqüências funestas se originaram a partir deste eu cogitado: o outro só pode existir quando for possível se reduzir (leia-se: se curvar) ao meu pensamento; Deus (isto é, qualquer realidade que me transcenda) é uma hipótese inapreensível, não evidente. A ética e o sagrado são expulsas do exercício científico, pois este, com seu séquito de eus inchados, não pode reconhecer sua insuficiência total (ontológica).  

Se há uma coisa que nos faz mais conhecedores de nós mesmos, e até mesmo mais livres, esta coisa é se confessar, entrar na própria alma e apontar suas falhas. O reconhecimento de nossa insuficiência é a abertura primeira para nos reconciliarmos com a vida. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Refutações filosóficas baseadas na vida familiar



Há algumas correntes filosóficas que imperam ao nosso redor, fazendo adeptos e provocando movimentos que acredito poderem receber séria refutação quando se pensa na simples convivência familiar. 

A filosofia moderna é inaugurada com a subjetivação da verdade. O pensador entende que o fundamento primeiro da verdade só pode residir no sujeito que pensa. E desse jeito encontra um abismo enorme para sair de si e conseguir a verdade que pode ser compartilhada com o outro.

Qualquer pessoa que tentou se relacionar com alguém, e buscou cultivar este relacionamento para que durasse, sabe o quanto é impossível fazê-lo se pensarmos em verdades que apenas nascem do nosso sujeito. O exercício do respeito pela verdade do outro é constante. A surpresa que o outro nos desperta em não conseguirmos ter atingido sua verdade é diária. É só pensar no desafio de presentear alguém, e nas frustrações que isso pode provocar.  

Quando pensamos nos idealistas, que entendem ser a realidade o reflexo de nossos pensamentos, ou no psicologismo, que pensa algo semelhante, reduzindo a verdade a imagens mentais, outro exercício que enfraquece esta ideia é acompanhar o crescimento dos filhos. Quase nada segue o que traçamos. O amadurecimento deles, muitas vezes, é o contrário de fazer o que queremos, pois é ser eles e não nós. 

Se formos olhar as filosofias que enxergam mais as categorias ou as classes de pessoas em detrimento do indivíduo singular, dá para desconfiar que os autores delas raramente se apaixonaram ou amaram alguém a tal ponto que a vida daquela pessoa fosse invendável ou insubstituível. É o que move os pais a velarem os filhos doentes nas madrugadas de febre. 

Cientificismos e historicismos, de uma forma geral, querendo reduzir as ações humanas a equações que geram predições acertadas ignoram a atitude de sabedoria diária que a família nos convida para baixar a guarda de nossas certezas a fim de deixar o outro viver em nós de forma mais livre. Você mal sabe o que se esconde no próprio peito, como poderia se erguer a uma onisciência tal que abarcasse as possibilidades da vida de qualquer um?

Para fechar o elenco das principais filosofias, pensemos naquelas que pregam que todos devem buscar a felicidade em todos os momentos, tentando viver cada instante como se fosse o último, e como se ele pudesse ser repetido pela eternidade. É insustentável pelo própria ritmo da existência. 

A única forma de não devotarmos amor por qualquer coisa é sermos cercados pelo nada. Qualquer amor que nos conecte a algo fora de nós, cedo ou tarde, fecunda a consciência da perda inadiável, que é o sonho da morte que nos visita de vez em quando. Esses momentos são sombrios, gelados, opressivos. A saudade é uma filha adorável deles. A falta é a carrasca. De uma forma ou de outra, ainda que a ausência se faça, flertando com a sombra da morte, qualquer esperança de reencontro faz o amor reacender como se fosse a primeira vez. 

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Por que escolhi um herege como padrinho de meu filho?



Antes de mais nada, também sou um herege. O caçula vai se batizar na igreja católica, conforme o tronco materno. 

Não me desagrada em nada o rito. É uma igreja que descendeu de Jesus, dirigida por uma sucessão de pedros, que ainda contribui de forma importante para a fermentação da palavra de Cristo na Terra. Só que divirjo em pontos fundamentais que me apartam totalmente dela. Meus filhos deverão se aperceber da dimensão císmica disso em torno da primeira comunhão ou na adolescência. 

Conforme a doutrina católica, o padrinho deve ser alguém que preze pela condução espiritual (católica!) do afilhado até a idade da razão. Retirando o parênteses que coloquei, o padrinho que escolhi, acredito ter ele força para fazer este tentame. 

Quando anunciei à ele minha vontade, abraçou-me com tal alegria e surpresa que quase me afoga. Estávamos nadando em alto mar. Sua admiração é que sou rodeado por amigos tão santos que ele, pecador, não poderia ser uma primeira escolha. 

Esse amigo foi um dos primeiros a me apresentar o mundo como um lugar alegre e vivo, para além de qualquer igreja. Minha visão quase católica anterior me fazia ver isto aqui como uma contínua tentação para se afastar de Deus. Atava-me aos domingos a um serviço de evangelização que tomava o dia inteiro, como que me lavasse da poluição infernal da semana. 

Portador de uma liderança tranqüila, amigos gravitam em seu redor serenos. É capaz de engatar uma conversa boa, mas também de desaparecer do mundo ao tocar seu violão, seu teclado, sua guitarra, seu baixo. Seu laconismo esporádico engana. É que ele costuma se revelar apenas para o que adora. Preocupa-se com a ética, e já se esforçou muito para ajudar os pacientes de um grande hospital destas bandas. Hoje tem mais sede de filosofia do que de medicina, mas ainda, e muito, de medicina, de poker, de futebol, de surf.  

Ele me apresentou as músicas profanas mais lindas que hoje tenho no repertório. E passou por tudo isso sem um vício químico qualquer. Seu gosto pela vida nunca foi entorpecido por qualquer substância. Sempre a quis viver sóbrio. 

Certa vez ficou bêbado por uma paixão, talvez ainda como reflexo da sua pulsão de vida. A embriaguez consumia-lhe a razão, e quase incinera sua família. Em um laivo de lucidez, esforça-se para retirar das veias o álcool do perfume que o inebriava, toma todos os amigos queridos nos braços de um barco, sua esposa e os filhos no centro de tudo, canta um hino de reconciliação, pula ao mar, pia batismal de um serafim, e ressurge das águas novo. 

Até hoje, não tive nenhum amigo que submergiu tão fundo na sua própria fragilidade e voltou. 

Não espero que o padrinho de meu filho seja santo, e sei que ainda é falível demais. Mas, por tudo que já viveu e sobreviveu, não vi pessoa melhor para compadre. 

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

De uma pai velando o filho especial

Anjo do meu filho, protege-o da sinceridade das crianças. Faz dele surdo para não ouvir a chacota ou, por alguns instantes burro, para a não entender. 

Anjos dos filhos alheios, sei que já trabalham demais tentando manter estes meninos vivos até que venha a idade da lucidez, mas se Deus permitir alguma sensatez precoce, que seja feita a vontade Dele. 

Nossa Senhora de todos os anjos, vê, aquele é o menino que Tu me entregastes. Toma pela orelha todos os outros para que a ele não façam mal. Perdoa minha exigência. É que é a primeira vez que me afasto para que se sinta entre iguais. Mas, eu e a Senhora sabemos que não são. Claro, ninguém é. Só que ele ainda o é menos. 

- Que é isso! Uma queda! Como foi? Deixa eu ver. Pronto, não foi nada. 

Quer saber?! Deixem senhores e Senhora que ele se arranhe, que eles briguem, que alegria! Criança é isso mesmo.

De uma mulher ferida

Não me toques! Dói. Agora vens querer me tocar. Não. Chorei por algumas noites até que a noite permaneceu. Não vi Tua luz. 

Por que permites a sombra? Nunca deveríamos ter saído de Teu seio. Era tudo bom, dizem os padres, já que eras tudo. Inventaste de nos criar, e a criação desandou. 

Algumas pessoas deveriam não existir. Sejas sincero: até elas tu amas? Mesmo após as atrocidades que perpetram? Não deverias. Amar criminosos deveria ser crime. 

Não entendo Tua lógica. Falam do inferno. É a única criação plausível. 

Droga! Essa maquiagem não ficou suficiente. Um milagre para me recompor. 

Queria dormir, mas temo que o dia nasça. Queria que o dia nascesse, mas temo em acompanhá-lo insone... 

... queria o Senhor aqui comigo, então seria dia, e meu sono seria bom.  

Ao anjo da guarda, com reverência

Que posso dizer? Acho que as palavras seriam tóxicas para os ouvidos. Sangramos delas todos os dias. 

Recebe meu corpo em abraço. Só que a carne pesaria em tua túnica. Nossos passos fazem tremer os arredores.

E um beijo? A acidez e os germes da boca te machucariam. Cuspimos o mundo, nosso alagadiço. 

Que posso eu sem palavras, sem corpo, sem beijo? Eu, apenas eu. É o que queres? Este eu desnudo pelo sopro de Deus. Um vento cálido que tira as roupas, a carne, os ossos, o sangue, as vaidades. Exposto, me ajoelho. Porém, sinto que me tomas pela mão, e enfim, sou teu.  

De quem sofre ao seu anjo da guarda

Sei que estás aqui. Por que não me falas? Se tenho os ouvidos surdos, antes um estrondo do que sussurros. Derruba todas as louças desta casa e estilhaça os vidros nas paredes, por Deus! Preciso te ver. 

Não é justo. Os seus olhos me desnudam, e eu mal diviso qualquer vulto. Sei que estás aqui. A mudez desta casa te denuncia. Por que me acordastes às três horas? Tudo dorme, mas não meus pensamentos. 

Será se é difícil te escutar porque falo demais? Queres que me transporte para esse vácuo celeste onde tu moras? Como posso viver sem estas angústias. São o que sobrou dos amores tristes, dos únicos amores. 

Pensando bem, não quero que apareças. Deixa-me envolta pelo frio, e a escuridão me basta. Tudo isso é Deus! (talvez estas palavras valham um tapa... mas me acaricias, e na tua túnica, uma lágrima, como seria bom vê-la!)

O que mais posso pedir a ti? Que apareça! Sei que estás aqui.

sábado, 26 de agosto de 2017

Diálogo sobre um jovem pensando em suicídio à mesa mediúnica

[Nas duas mediúnicas anteriores, falei diretamente com o obsessor. Esta sessão ele não veio. A mão do médium ficou inerte por um tempo até vir dois ou três abalos, então alguém se manifesta.]

- O Espírito com que você se comunicava não veio. Estou em nome da família espiritual do jovem que você assiste a fim de lhe fornecer esclarecimentos.

- Queria primeiro agradecer pela disponibilidade. Eu entendo que todo indivíduo encarnado possui uma família que o acompanha. Mas, poderia me falar um pouco mais sobre a magnitude dessa família. 

- Você deve entender da mesma forma que nenhum indivíduo surgiu ao nascimento que vocês presenciam. Desta família que ladeia o rapaz, não sou nem o mais novo, nem o mais velho. Há os mais novos que se uniram à nós, que são os que mais sofrem com as dores de nossos irmãos. Há os mais velhos, cuja experiência nos passa uma serenidade de saber que o bem sempre ganha ao final. Situado entre os extremos, já tive meus momentos de chorar e me desesperar em demasia pelos meus amores. Venho enxugando as lágrimas e perguntando mais aos nossos superiores. 

- Você fala como se houvesse toda uma hierarquia e de fato uma família quase como que consangüínea no plano espiritual. Nunca pensei ter esta força tangível estes laços. 

- Na matéria, o sangue nos aglutina, mas muitas vezes é um força odiosa e pouco querida que nos amarra. Alguns desafetos estão sob o mesmo teto, e isso é uma infelicidade constante. Todavia, há o dedo de Deus, que sendo Pai de todos, quer que todos se entendam. No espaço, por outro lado, soltos do peso da carne, desobrigados das exigências sociais que nos unem para a sobrevivência, os laços dos Espíritos são feitos de afeto, e, por isso, ainda mais tenazes. O amor que parteja cada membro dentro do nosso círculo nos faz ter uma devoção por vezes doce, outras vezes angustiante de seguir suas aventuras na carne. Por ora, estamos constritos pelo destino do nosso amado. 

- Perdoe-me evocar esta possibilidade, mas o que acontece quando algum de vocês falham, digo, por exemplo, nestes casos de morte por suicídio. 

- Ah! Amigo, são tantos os motivos que conduzem uma pessoa a desertar da existência como a forma de elas chegarem a nós. No geral, um desespero horrendo acompanha a mente que, aflita, rasgou suas promessas e planos de antes de ingressar na carne. Alguns descrevem agressores que pululam ao seu redor, outras vezes é apenas um em particular. Todavia, o que mais me compadece nas cenas que vejo dos que se enveredam no abismo do suicídio é o trauma íntimo da experiência. Toda a lógica do universo parece se estilhaçar na mente, nada faz mais sentido. Todas as potências do espírito estão nele presentes, mas sangrando. Se levantar é um suplício, pior é voltar a se sentar porque já não se vislumbra a possibilidade de andar. E quando se anda, marcha trôpega, cada passo evoca uma experiência de dor. Que importa quem berra ao lado impropérios, insultos? A perda do sentido é a violência mais assassina que existe! Se pensava não existir sentido em vida, tão pouco a morte revelará qualquer luz.

- O que é feito para ajudar estes irmãos?

- Tudo o que podemos, e não é pouco. Mas, nenhuma força pode superar a vontade do Espírito. 

- Nossa ciência anda falando da força da química cerebral. 

- Com a visão fixa apenas na vida atual, a química cerebral e a genética parecem dois monstros indomáveis a determinar a ação do indivíduo. Quando nos afastamos do momento atual e enxergamos a solidariedade entre as vidas, chega o instante de termos a visão clara dos motivos que costuraram os desfechos atuais. Se o universo é obra de Deus, a vida de cada Espírito é obra própria. De forma nenhuma quero desmerecer os avanços que o Grande Pai permitiu que a ciência tivesse para ajudar os cambaleantes. O que devemos é exaltar a força de cada filho de Deus de alcançar a iluminação. Se você pensar bem, não faz o menor sentido culpabilizar a química ou a genética. Quanto mais o homem se aproxima destes temas, mais eles escorrem pelas próprias mãos. Esquecem, então, que é no próprio homem que se encontra a chave de seus males. Nele e em Deus. Nestes dois pontos juntos. Homem e Deus, religados. 

- Você pode me descrever algum resgate de uma alma querida que chegou à vocês nesta situação em que falamos?

- Eu chorava em meio ao escuro de tudo. Depois de anos que meu amado esteve perdido em si mesmo, olhos opacos para qualquer coisa, uma faísca se acende em seus olhos. Era Deus que germinava em sua lembrança. O amor que rompia seu encastelamento. Já não falava, já não fitava qualquer semblante há tempos. Sei, porque frequentemente me permitiam ir a ele. Encontrava-o, tomava-o nos braços, derramava lágrimas sobre seu corpo, e ele não me via, não me sentia, não me retornava. Naquele dia, sua mão encrespou na minha. Eu me assustei. Uma lágrima escorria de um olho. Refletia a luz distante que vinha da zona de socorro onde eu estava hospedado. Uma oração sincera nasce de meu peito. Faço-me luz envolvendo-o por completo. Eu e ele éramos um, indiscernível naquele momento. Pela primeira vez sinto atravessar de novo seus sentimentos, como cavando os escombros que o asfixiava. O calor do seu corpo é retomado, e algumas palavras emergem de sua boca: "a-ju-de-me... D-e-u-s". Seu corpo se faz leve como vento, o meu volita junto ao dele e, em um pensamento, chego ao hospital do acampamento de socorro. Evoco vários amigos. Deito-o sobre uma maca. Os médicos e enfermeiros cercam-no e assumem os cuidados. Aproximo-me de alguns da nossa família e choro convulsivamente todo o agradecimento ao Pai que estava no peito. Damo-nos as mãos e passamos a orar pela sua recuperação. Em breve estaria entre nós. 

- Nem sei o que dizer. Essa cena me emocionou muito. Você é o mesmo daquela outra comunicação?

- Não. Sou mais um. 

- Quantos são, esta família?

- Quantos ela precisar. Somos. 

- Posso divulgar esta conversa?

- Não se esconde a luz sob um alqueire, mas põe-na ao velador, para que ilumine a todos. 

- Grato.

- Eu que o sou.