sábado, 19 de janeiro de 2013

A Doutrina Espírita e o filme A Viagem (Parte II)


Olhando apenas dois ângulos sobre os quais me ative a falar na postagem anterior, sobre a concepção de reencarnação e a de liberdade, em que se aproxima e em que se afasta o filme da doutrina?

Realmente acredito que no conceito de reencarnação do filme a alma mantém sua individualidade, embora não o corpo. As reminiscências e as marcas de nascença (que o Espírito leva em seu perispírito) sinalizam isso. O herói de uma vida, mantém seu heroísmo em outra, embora em situação diferente. 

O que parece estanque, e que no Espiritismo é mais dinâmico, é a condição dos maus. Que os Espíritos bons continuem bons, é o que acreditamos, e mais, que progridem ao ótimo e assim por diante. Mas, que os maus se perpetuem no vício, é o que negamos. Todos os Espíritos se movimentam rumo a reconciliação com o bem universal. A maldade de um indivíduo também é prisão da qual ele é incitado a se libertar. O ator Hugo Weaving assume o papel de vilão repetidas vezes sem uma nesga de arrependimento que para o Espiritismo é o primeiro passo da iluminação a fim de escapar do círculo de vício moral e da dor por ele provocada.

Os irmãos Wachowski investem no tema da liberdade como atributo maior do ser humano. É o que o define. Tanto é que mesmo "não nascendo de útero", concebida por máquinas, o que fez o espectador entender como humana a garçonete japonesinha foi exatamente ela conseguir se libertar do condicionamento da “ordem natural” a que foi submetida desde sua fabricação e questionar os valores que a circundavam. 

Para o Espiritismo a liberdade e a libertação são definitivamente importantes, mas não ilimitadas. Por exemplo, o que poderia levar a um espírita estranhar o suicídio de um dos “heróis da libertação” é o fato de em outra vida ele não ter vindo com seqüelas em seu corpo, mas ainda perfeitamente livre e apto a lutar por mais liberdade.

A dor cerceia a liberdade de quem não a soube utilizar em qualquer outro momento da existência, proporcionando ao Espírito a lição não de como ser infinitamente livre, mas de como ter uma boa liberdade. 

Filosoficamente coerente é essa posição. Não digo verdadeira, pois isso é ponto de discussão litigioso, mas coerente. Se Deus existe (e o dogma da existência de Deus abre afirmativamente a filosofia espírita), diz Sartre, não há como o homem ser completamente livre, pois desde o princípio seus atos se destinam a cumprir a vontade de Deus em sua vida. Como a existência da tesoura se destina a cumprir a vontade de quem a fabricou: cortar.

Não é por não sermos totalmente livres que não somos completamente livres. A liberdade completa do Espírito a que se destinará todas as criaturas está condicionada a limitação do ser criado. Este não pode acessar a essência do Criador que sempre lhe será maior. Mas, as múltiplas existências, infinitas ao nosso ver, apontam um futuro cuja liberdade não é menor do que a maior liberdade que possamos conceber. 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Decifrando o filme A VIAGEM


Acredito que possuo algumas chaves para compartilhar rumo a decifração do filme A Viagem dos irmãos Wachowski. 

A primeira delas é a concepção de reencarnação nela passada. É uma que, definitivamente, mantém a individualidade e a aspiração dos Espíritos entre uma vida e outra, bem como seus medos, seus entraves, suas necessidades de superação.

A segunda é uma dica aos espíritas que forem assistir. Favor, não ir esperando que os erros de uma vida passada devem ser "pagos" na outra vida, como uma Lei de Talião universal. O que parece se desenrolar em todos aqueles tempos, e que podemos concluir que deve ser assim para todos os tempos sucessivos, são grandes dramas da condição humana, isto é, vontade de liberdade, vontade de saber, vontade de amar, vontade de ser feliz. Todos temas que conduzem a transcendência da "ordem natural". Existe a repetição do padrão aprisionamento-libertação em todas as épocas. Uma mensagem que corre os mares e os ares, saindo de um tempo a outro. 

Não me surpreenderia se houvesse uma simbologia importante presente na água do mar que acolhe o navio que inicia o filme, na água que quase afoga a repórter investigativa fazendo perder certos documentos importantes, e no fluido cósmico que transmite a "verdadeira verdade"para o espaço infinito. De qualquer forma, o tempo é um imenso mar composto por mil gotas. Não é a toa que os fluxos daquelas vidas se misturam como ondas revoltas desrespeitando o tempo e o espaço convencionais. Não é no tempo que devemos nos concentrar muito, mas nos dramas, os mesmos dramas humanos de libertação. 

Existe uma clássica metáfora filosófica de como seria a visão de Deus. Claro que é algo pretensioso querer explicar "a visão de Deus", mas houve quem ousou fazer. E, de forma simples, é como se fosse uma partitura. Na folha de papel está toda a música em um só instante. Quando eu a entrego a um músico, entrego-a de forma integral, pronta, fechada. E os dedos do instrumentista a vai deslindar no instrumento que quiser tocar. Mas, ela, no papel, está toda, inteira, incólume. Em certo momento do filme, quando um dos ciclos está se fechando, a partitura é terminada. A grande metáfora do filme está na partitura! Não é a toa que, em inglês, seu nome é Cloud Atlas, assim como o do concerto escrito pelo jovem músico. Eis o motivo de a estética do filme se passar misturando, como em um grande concerto, o tempo, o espaço, as pessoas. Tudo é uma coisa só.

Por fim, veja que coisa!, há uma revolução sem precedentes na forma de encarar as profecias expelidas pela boca da sacerdotisa. Em uma das histórias, a que finaliza, o personagem do Tom Hanks, que até então vem seguindo direitinho todo o combinado pelo vaticínio, desobedece em prol da vida de uma criança. Ele se utiliza da sua liberdade, quebrando a ordem pretensamente divina, a fim de dar lugar ao que o seu coração diz sobre como melhor salvar a pessoa que ele ama. Ele já tinha feito isso antes com o Espírito maligno que o acompanhava. Repete o feito. E não se arrepende. Por que revolucionário? Porque não é mais seguindo a mensagem do Deus (ou do Diabo) exterior que o homem constrói sua vida, mas seguindo a que vem do seu peito. É como se deixássemos de acreditar que é o Sol que gira em torno da Terra. Isso contrasta completamente com a mentalidade do povo primitivo a que pertencia. Isso o entrega a uma nova forma de transcendência. Uma transcendência que nasce dentro de si, da sua imanência. Isso lhe coloca no controle da sua própria vida. É assustador, e apaixonante. 

Eu tinha falado sobre o fim, mas o fim mesmo é quando tudo acaba. Quando sua vida acabar, para onde você pensa ir? Para o paraíso, para o inferno? Assistam ao filme e vocês verão que a resposta que ele propõe não se distancia muito da que Ulisses de Homero daria. E há quanto tempo Odisséia foi escrita? Não parece, certamente, ser o tempo que importa!

O que o Espiritismo tem a falar sobre tudo isso, falo depois. Haverá tempos...

domingo, 13 de janeiro de 2013

O Espiritismo e a nossa Mortalidade


Os espíritas não se tornam alienados por viverem pensando sua imortalidade? 

Sobre essa pergunta mil pensadores se inclinaram. Não necessariamente analisando o Espiritismo, mas o duelo infindo entre mortalidade e imortalidade.

Eloqüentes e clássicos discursos existem nas obras de Kant, alertando para as ilusões da Metafísica, e nas obras de Nietzsche, reinventando o conceito de niilismo. 

E para começar diálogos com a filosofia, a que esse blog se propõe, devemos por o primeiro pé nas obras de Homero, ou atribuídas a ele, as tais Ilíada e Odisséia. Particularmente sobre a figura do sedutor Ulisses. 

Vindo da Guerra de Tróia, vitorioso e sujo de sangue - pois não contentes de vencer, os gregos decidem trucidar os troianos - Ulisses é castigado por Zeus, em virtude dessa desmesurada crueldade, com uma volta não pacífica a Ítaca, seu querido reino. Enfrenta mil desventuras, entre monstros e sereias. Mas, particularmente, a experiência de Calypso, é a que dá a maior ilustração ao tema que nos dispusemos enfrentar. 

A ninfa, apaixonada por Ulisses, se utilizando da sua potência divina, promete ao herói imortalidade e juventude se ao lado dela permanecer seu amante para todo o sempre. E o guerreiro aceita a proposta por um tempo até que o pranto de não estar em seu reino, no seu lugar, toma conta de seu peito.

Ulisses rejeita a imortalidade juvenil e as doçuras do acolhimento do corpo daquela divindade para ir em busca do seu reinado, mas também, da velhice (que traz a angústia da própria morte) e da reunião familiar (que traz a angústia da morte dos que estima). Por que tal escolha poderia ser considerada mais certa, louvada como mais sábia do que a outra? E, olhe, que definitivamente não era uma questão de fascínio e mentira de uma divindade traquinas. Calypso estava realmente disposta a ofertar ao seu amante o salvo-conduto para um idílio eterno. 

O que a sabedoria grega dos mitos antigos nos quer contar é que vale mais a assunção do nosso papel no seio do universo (reinar em Ítaca) do que o desfrute da miragem de uma vida que não nos pertence (amar Calypso). Mais vale morrer tentando cumprir a missão que nos cabe aqui e agora (voltar a Ítaca), do que viver a imortalidade que não tocamos lá e depois (permanecer para sempre na ilha da ninfa). Mil vezes viver o que vim para viver, do que já estar morto preso a uma certa imortalidade, perdida minha atual identidade, meu norte de hoje, meu trabalho desta vida.  

- Mas, como assim? Então, segundo a mais clássica fonte filosófica, é vã toda a pregação que os espíritas fazem sobre sermos imortais?

O tema promove um livro. E me basta, no momento, a façanha de apenas iluminá-lo. Peço para que o leitor amigo tenha apenas a graça de meditar sobre as seguintes passagens:



  1. "Jesus, porém, disse-lhe: Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos"(Mt 8:22)
  1. "O anseio de morrer para ser feliz é enfermidade do próprio Espírito."(Emmanuel em Caminho, Verdade e Vida)
  1. "Não consiste a virtude em assumirdes severo e lúgubre aspecto, em repelirdes os prazeres que as vossas condições humanas vos permitem."(Um Espírito Protetor
  2. em Evangelho Segundo o Espiritismo)

Voltaremos ao tema, sob novos prismas. 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O Espiritismo é minha religião e Eu me sinto cristão


Meu amigo Saharoff pergunta se o Espiritismo é religião e, em ele sendo, se é cristão. 

Aparentemente o meu título já responde as perguntas. Mas, por trás disso há muita discórdia no reino dos termos. 


Existem mil referências de definição que poderiam enquadrar o Espiritismo como religião e outras tantas que o poderiam dispensar desse epíteto. Mas, eu gosto de usar o que Allan Kardec, aquele que deu o ponta pé inicial em termos de Espiritismo, falou sobre o assunto, em um discurso que proferiu perto do final da vida:


Sobre religião: "(...) então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos."


Antes de falar isso, ele tinha feito três páginas de discurso para deixar claro o quanto "o sentido filosófico" (ou essencial) da religião era o de estabelecer laços de fraternidade e comunhão de pensamentos mais do que de estar sob o teto de uma mesma liturgia. Contudo, se assim o fosse, muita coisa seria religião, não é mesmo?


Então, ele completa: "Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto."


Aí fica difícil responder o segundo ponto, já que o Espiritismo é e não é religião. Mas, é interessante o conceito que Kardec dá de Espírita Verdadeiro em O Livro dos Médiuns: "Os que não se contentam com admirar a moral espírita, que a praticam e lhe aceitam todas as conseqüências." Diz ele que "estes são os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos". 


No Dicionário Filosófico de André Comte-Sponville há o seguinte verbete sobre Cristão: "Não é apenas um discípulo de Cristo (senão Espinosa seria cristão). Ser cristão é crer na divindade de Cristo."E, se assim o for, seríamos, os verdadeiros espíritas, como Espinosa o era. Mas, como não acreditamos na divindade do Cristo, é difícil as igrejas cristãs oficiais nos considerar da mesma forma. 


Fica aqui então, ao final, o que eu sinto, longe de todas as contendas. O Espiritismo é minha religião, porque, para mim, religião é onde eu coloco meu coração. E é exatamente dentro dele, desse quarto que  carrego dentro do peito, que me ponho a falar com Deus. Mas, digo ainda aqui, há amigos queridos que não são Espíritas e que me sinto em igreja da mesma forma junto deles. Acho, então, que é porque, na verdade, meu coração é minha religião. E como as palavras de Jesus conseguiram entrar nele de mansinho, sem muito alarde, não tenho como não me sentir discípulo de Cristo. 


Muitos espíritas, senão todos, pensam assim. 

domingo, 6 de janeiro de 2013

Iniciando com um sonho


Estive sonhando esta noite com Sartre. Não muito bem com ele. Mas, como poderia associar sua filosofia a do Espiritismo. Pensei, então, em começar um blog que pudesse fazer dialogar tudo o que venho lendo até agora com o que ainda não vi sendo escrito sobre "o que o Espiritismo tem a ver com tudo isso".

Muita coisa aconteceu depois que Kardec passou pela Terra. Já deixo meu posicionamento bem claro aqui. De tudo o que li, de mente aberta, pode acreditar, não enxerguei uma só vírgula de erro na filosofia espírita, mas infinitas possibilidades de diálogo com tudo o que desde então aconteceu no mundo dos pensadores.

Se bem que a história da filosofia, eis uma primeira grande chave para a polêmica discussão sobre a atualização do Espiritismo, não é feito a história das ciências em que um princípio pode e deve ser constantemente violado por um "mais verdadeiro". A história da filosofia parece mais com um desfile artístico em que podemos simpatizar com esta ou aquela obra de arte, mas nunca enveredar numa discussão acirrada sobre quem é mais bela.

A segunda chave que dou para a leitura deste blog é de onde eu capto a maior parte destas reflexões. É de um espírita, José Herculano Pires, a quem eu oro com muito agradecimento pelos caminhos que ele abriu nesse campo do conhecimento humano, e de um ateu, Luc Ferry, cujo esforço de pensamento dos últimos dez anos, pelo menos, vem abrindo uma brecha profunda no seio da nata dos pensadores ocidentais (particularmente franceses e alemães), resgatando a filosofia como espiritualidade e caminho de salvação. A cada dia me convenço que foi Deus que mandou Luc Ferry ser ateu nesta encarnação.

Muita coisa para expor, pessoal. Mas, eu vou com calma. Esse blog deve servir para pelo menos duas coisas: 1. Organizar meus pensamentos; 2. Expor apontamentos que ajudem as pessoas que levam o Espiritismo para o meio acadêmico defendê-lo com mais argumentos. Extra: nosso melhoramento moral pelas vias do aprimoramento intelectual. Um grande amigo meu diria que eu deveria ter colocado este ponto em primeiro lugar, e não além de tudo como extra. Fica aqui a crítica dele que sai de dentro de mim.

Uma outra certeza que me vem diariamente é que esse tal de Espiritismo será matéria para o próximo século entender de verdade. Quando vejo ele ainda ser anatemizado por ser obra do demônio, eu me calo.