sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A insuportável transparência dos outros



Estive pensando sobre a opacidade das pessoas depois de ter vivido uma experiência grupal hoje em que uns choraram aos outros suas dores íntimas. Foi um momento catártico que teve sua razão de existir. Mas, seria universalizável? Seria desejável absoluta e infinitamente?

Acredito que não. A bíblia nos adverte que a visão de Deus cega o homem, talvez mais do que isso, fulmina-o. A mitologia grega não dizia diferente a respeito de um deus menor que Javé como era o caso de Zeus. Menor porque Zeus não representava a onisciência e a onipotência na mesma unidade. 

Pensar em Deus se manifestando completamente a nós é pensar em a Onisciência e a Onipotência se revelando de súbito, sem máscaras, sem intermediários. Ver a Onisciência sem máscaras seria o meu saber inteligir a Onisciência. Ver a Onipotência sem máscaras seria a minha vontade se confrontar com a Onipotência. A loucura e a humilhação seriam as conseqüências imediatas no primeiro átimo de contato com qualquer átomo desta experiência. 

Não creio que fosse diferente entre os seres humanos. Se tivéssemos a oportunidade de contemplar por um instante cada indivíduo em toda a sua nudez, cada curva e cada cicatriz deveria se me apresentar com a sua história no mesmo tempo. Tudo seria revelado: o que ele foi, o que vem sendo, suas descontinuidades, projetos soltos, tudo isso em sua simples presença.

Nem nós mesmos suportaríamos esta visão no espelho. Deformidade, aberração, protuberâncias e cavidades. Tudo o que deixa o outro substancialmente diferente de mim exposto em um estalo. O mais natural seria ficar cego à tudo. O outro, assim como Deus, carrega um assombroso infinito incógnito. Deus, no perfeito. O outro, na diferença radical. 

Quando escutei, então, no círculo de desabafo que experienciei hoje, que o mundo poderia ser bem melhor se nos revelássemos mais no que temos de bom, me perguntei por que não no que temos de ruim. No mesmo caminho, por que não nos despirmos por completo? E veio, por fim, esta reflexão dantesca que ora se apresenta nesta página. 

Leibniz tinha razão em sua monadologia. A única forma que temos de chegar ao outro é através de um outro que consiga atravessar a todos, sem se ferir. Apenas o Absoluto e o Fundamento de tudo tem o poder de fazer com que nos comuniquemos em paz. Ele nos protege uns das imagens nuas vizinhas. 

O tempo, nossa condição, faz cair as roupas aos poucos, graças à Deus! Dá tempo de segurar a peça que se desmonta a fim de não ferir o próximo. Revelar nem sempre é a boa opção. Esconder é tão sábio quanto. O antídoto de tudo isso se chama tempo oportuno até o dia em que tivermos sentidos robustos o suficiente para mirar a realidade inteira face-a-face. 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Mundo líquido segundo o Evangelho



(Reflexão engendrada por ocasião de palestra proferida ao dia 27 de setembro de 2017 acerca do tema "A coragem da fé", presente em O Evangelho Segundo o Espiritismo)

E o barco estava já no meio do mar, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário; Mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, andando por cima do mar. E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: É um fantasma. E gritaram com medo. Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: Tende bom ânimo, sou eu, não temais. E respondeu-lhe Pedro, e disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas. E ele disse: Vem. E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, sentindo o vento forte, teve medo; e, começando a ir para o fundo, clamou, dizendo: Senhor, salva-me! E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:24-31)

 O primeiro elemento que me chama a atenção nesta passagem são as águas em meio ao vento contrário e o açoite das ondas. Andar sobre elas é ainda mais assustador do que ver um fantasma. Todavia, Pedro se atreve. 

Dizem os biólogos que o mundo nos acolhe líquido ao ventre materno e, por muito tempo, permanece líquido para nossa compreensão. 

Quando finalmente o entendemos sólido, vêm os filósofos e sociólogos, e dizem que permanece líquido. É o apeiron de Anaximandro, mas também o mundo líquido de Bauman, por motivos diferentes. O primeiro entendia que nosso gueto de existência está circundado por um sem fim de caos inapreensível, de onde tudo deve ter se originado. O segundo entende que a concepção mais ou menos rochosa da realidade que a cosmologia dos antigos e a teologia dos medievais nos davam se liquefez nestes tempos pós-modernos. As amizades e os amores não possuem mais aquela eternidade de antes, mas se desfazem com qualquer vento contrário e açoite de uma onda qualquer. 

Essa concepção é a visão da primeira metade da cena evangélica que expus. O temível mundo das águas. Mas, há algo além do vapor do mar. O que é? Jesus, seu convite e sua postura de acolhimento. 

Sabe-se que Jesus era um homem de tal encanto e magnetismo que sua presença acalmava nossos mares revoltos. De outro modo, sua mesma presença tinha o poder de provocar morte nas pessoas: do que elas vinham sendo para, então, ressuscitarem no que elas estavam destinadas a ser. Isso é o que demos para chamar, na tradição cristã, de conversão

De volta às águas, lembramos que na imagem veterotestamentária, tudo antes de ser criado por Deus era apenas água. E o Senhor pairava sobre elas.

A associação me parece clara. A cena em que Jesus paira sobre as águas reproduz solenemente o ato criador do mundo. Pedro teme e cai. O fundo das águas se mistura com sua morte iminente. Jesus toma-o pela mão e o salva, o que quer dizer uma nova criação para Pedro. Se antes ele ainda não existia em Cristo, desta vez pode se considerar batizado para a nova vida. 

Isso não impede que Pedro venha a experimentar a morte do cristão em outras passagens, particularmente quando nega o rabi. Mas, o cristão não é reconhecido pela sua perfeição, mas pelo jeito de sua caminhada, buscando pairar sobre as sólidas palavras de Cristo, ainda que em passos vacilantes. 

Ao mundo líquido de Bauman ou ao apeiron de Anaximandro, ou ainda, ao universo da termodinâmica que se derreterá em caos após toda a energia ter se dissipado em calor, sobreviverá o Espírito de cada pessoa que Deus criou. Tão logo qualquer corpo submergir nas águas primárias da criação, é a mão de Deus que resgatará o homem para continuar sua escalada em outros corpos, planetas, universos criados. 

O mundo vem precisando de Cristo sobre as águas. E enxergá-lo perto de nós com sua mão estendida, acredito ser a grande resposta do mal-estar do milênio. 




Figura: De Amédée VarinLe Christ marchant sur la mer. Disponível em http://www.culture.gouv.fr/GOUPIL/IMAGES/101_Christ_sur_eau.jpg (Gravures et eaux fortes)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O método do discurso demoníaco



A primeira questão que se levanta é se existe um discurso demoníaco. Sim. Ainda que não se acredite em demônio na acepção que se toma no senso comum do termo, o discurso demoníaco é algo vastamente estudado por várias tradições, particularmente a cristã.

O discurso demoníaco consiste naquele que quer lhe afastar de Deus. 

Se acreditamos que Deus não é único e que depende da religião que o enxerga, o discurso demoníaco é aquele que contradiz a forma de enxergar o seu deus. Sendo Deus único, e as religiões apenas O enxergam por diferentes ângulos, o discurso demoníaco absoluto seria o que apresenta uma mentira fundamental sobre o caminho que Deus nos prepara. 

De todo modo, há um certo método do discurso demoníaco se apresentar. Dos mais efetivos, podemos resumir em alguns passos:

1. Descrever a realidade na verdade dela, muitas vezes evidenciando uma sobriedade a que nossa visão cotidiana não está acostumada; 
2. Apontar nesta realidade as lacunas, as falhas, as faltas que de fato existem.

Essa é a etapa de sedução do ouvinte. É quando o discurso aponta o que há de verdade e que reconhecemos como tal, mas aprofundando análises que nos levam a aderir ao discurso. 

3. Tendo conseguido levar o ouvinte ao aprofundamento da análise, começar a desvirtuá-la, semeando mentiras que passam despercebidas pelo incauto;

O nível superficial da realidade é fácil de ser descrito com certa precisão por uma mente inteligente, fazendo-se facilmente compreendida pelo interlocutor. Contudo, quando se guia o outro para as profundezas de qualquer análise, as ligações entre os fatos tornam-se vaporosas, quebradiças, frágeis, e apenas alguém seduzido no discurso para comprar o que está sendo vendido. 

4. A partir destas profundezas, agigantar as falhas da realidade em que se está inserido até o ponto de fazer o ouvinte sentir-se desapegado, por desprezo, da sua vizinhança. 

Esse é o momento crucial para este discurso, pois tem como que sua presa isolada, tanto melhor se todos os fatores de proteção e os amigos que poderiam lhe devolver a sobriedade tiverem sido desacreditados. 

5. Propor, a partir de então, uma nova realidade que se apresenta como revolucionária, fazendo com que o ouvinte seja, por assim dizer, iniciado nas novidades deste mundo recém-descoberto. Cercá-lo de outras relações generosas que apaziguem o desconforto da ruptura com a sua antiga forma de ver. 

Envolvido por esta teia astuciosamente urdida, a pessoa passa a se permitir ações que fogem completamente da sua forma de ser, podendo sacrificar a própria vida. A consciência e o senso moral se anestesiam, lançando-a para um cipoal que há muito custo, com bastante intervenção externa, poderá se desvencilhar. 

É desse modo, por causa dos múltiplos discursos demoníacos que sussurram em todos os lugares, que surge a necessidade do espírito crítico e da busca escolástica de entender qual a vontade de Deus, que verdade pode haver no mundo, que tesouros primordiais se escondem na consciência, que certezas para o senso moral. Deus, verdade, consciência e senso moral são os principais alvos de qualquer discurso demoníaco. Relativizá-los é o trunfo. 

sábado, 23 de setembro de 2017

Médium João de Deus, Lair Ribeiro e a morte de Marcelo Rezende



"Médium João de Deus e médico sofrem acusações após morte de Marcelo Rezende" diz a notícia que pode ser conferida clicando aqui

Os repórteres registram que o médium João de Deus teria revelado (mediunicamente?) Lair Ribeiro como a cura para o câncer que matava Marcelo Rezende, famoso apresentador de um programa de TV. 

Por que se deve tomar cuidado com revelações bombásticas de médiuns?

Qualquer espírita que leu qualquer livro introdutório de Allan Kardec responde isso brincando.

Médiuns não tem acesso a verdades absolutas. O mundo dos Espíritos a que os médiuns têm acesso é composto por um sem fim de habitantes que podem emitir revelações. Estes Espíritos são de todas as classes, desde os mais sábios aos mais embusteiros. Kardec havia pedido cautela com qualquer revelação. "Rejeitar nove verdades a aceitar uma mentira", aconselhava. 

Nenhum médium pode se gabar de ser imune a espíritos enganadores. Ninguém é blindado contra a sugestão de mentirosos. Não há pessoa completamente transparente a si mesma. A quantidade de fragilidades presentes em nossa alma que podem ser utilizadas contra nós por qualquer um não tem conta. Não se pode receber dos médiuns qualquer informação que, pretensamente, venha do mundo espiritual sem análise. 

Isso não quer dizer que a mediunidade não exista. Falhas de um fenômeno não provam a total inexistência do mesmo. Provam apenas que o fenômeno tem falhas. No caso aqui, a verdade que cai por terra é: "é confiável qualquer informação que venha de um médium confiável?". Resposta: não. Um médium de boa índole e que se vigie muito acaba por se tornar um excelente intermediário de Espíritos bons, mas nada impede que Espíritos dissimulados também se comuniquem. 

O que acontece com as pessoas, particularmente as fragilizadas pela doença e sedentas de esperança, é que se apegam, como a uma tábua em alto mar, aos que trazem nos olhos certezas de salvação. É uma situação complicada, porque o milagre depende dessa entrega, o que implica certa anulação do espírito crítico. Porém, há outros fatores que geralmente desconsideramos: o tempo de Deus e o que para Deus é vida.  

O sofrimento tem um tempo de acontecer no ser humano que é o da sua redenção. Sempre está de mãos dadas com um processo de amadurecimento do Espírito. Seu fim é a aquisição do aprendizado. Os espíritas, acreditamos que as curas de Jesus aconteciam na clarividência do momento certo de fazê-las nascer. Como um parteiro respeita o momento de tirar a criança.  

E o fato de viver mais um pouco ou morrer são dois caminhos indiferentes para Deus, já que para Ele tudo é vida. Sendo o tempo uma ilusão para a eternidade, viver mais um pouco ou morrer, e portanto continuar vivendo de outro modo, com a busca de uma consciência em outro nível, são apenas vivências diferentes aos olhos de Deus. 

Pense nisso, se você estiver diante de um médium, e um Espírito "de luz" disser a este que não se preocupe pois você vai viver ou sobreviver ou se curar do mal que te aflige, não será uma mentira se morrer, será apenas uma outra verdade que você não estava preparado para entender. Faltava o complemento da revelação, pois mesmo morto, estará vivo, redivivo, e em algum tempo liberto

Em outras palavras: se você é uma pessoa apegada no aqui e agora, não confie em pessoas que tem o ponto de vista da eternidade, a frustração é certa. 





quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Quem sou eu verdadeiramente?



Por que o eu descrito nas Confissões de Santo Agostinho (~400 d.C) é mais verdadeiro do que o eu pensado por Descartes em seu Discurso sobre o método (1637)? De outro modo, por que o eu que se confessa é mais real do que o eu que se pensa?

O eu descrito por Santo Agostinho vai se mostrando na própria biografia, reconhecendo a impossibilidade de ser fundamento de si mesmo, aceitando a primazia do entorno em relação a si, entendo-se projeto e imperfeição caminhante. Este eu reconhece seus afetos, suas relações, suas derrocadas, e seus pontos de virada, em uma palavra, sua navegação na vida, ou, em uma palavra mesmo, a vida. 

A partir desta reflexão, dois respeitos surgem de forma irredutível: a Deus, como necessidade primeira da existência; ao outro, como impossibilidade de ser extinguido. O sagrado e a ética dão-se as mãos na abertura fundamental do eu para o mundo. 

O eu cartesiano é provado a partir de um conjunto de refutações que vão deixando de lado tudo o que dá suporte a ele. Um eu assim, hipoteticamente cogitado, é um fantasma na pior acepção do termo. É vaporoso, impalpável, imaterial. Não há possibilidade de atuação na vida. Desconsiderando os outros, mas também suas possibilidades de falha, tão pouco tem carne para acertar qualquer coisa. Tamanho foi o labirinto em que Descartes se meteu, que após todo o esforço da dúvida hiperbólica, o eu a que chegou como fundamento da existência era um incapaz de se comunicar com tudo o mais, necessitando aceitar dogmaticamente a necessidade de Deus para lhe salvar deste isolamento total (ontológico). 

Conseqüências funestas se originaram a partir deste eu cogitado: o outro só pode existir quando for possível se reduzir (leia-se: se curvar) ao meu pensamento; Deus (isto é, qualquer realidade que me transcenda) é uma hipótese inapreensível, não evidente. A ética e o sagrado são expulsas do exercício científico, pois este, com seu séquito de eus inchados, não pode reconhecer sua insuficiência total (ontológica).  

Se há uma coisa que nos faz mais conhecedores de nós mesmos, e até mesmo mais livres, esta coisa é se confessar, entrar na própria alma e apontar suas falhas. O reconhecimento de nossa insuficiência é a abertura primeira para nos reconciliarmos com a vida. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Refutações filosóficas baseadas na vida familiar



Há algumas correntes filosóficas que imperam ao nosso redor, fazendo adeptos e provocando movimentos que acredito poderem receber séria refutação quando se pensa na simples convivência familiar. 

A filosofia moderna é inaugurada com a subjetivação da verdade. O pensador entende que o fundamento primeiro da verdade só pode residir no sujeito que pensa. E desse jeito encontra um abismo enorme para sair de si e conseguir a verdade que pode ser compartilhada com o outro.

Qualquer pessoa que tentou se relacionar com alguém, e buscou cultivar este relacionamento para que durasse, sabe o quanto é impossível fazê-lo se pensarmos em verdades que apenas nascem do nosso sujeito. O exercício do respeito pela verdade do outro é constante. A surpresa que o outro nos desperta em não conseguirmos ter atingido sua verdade é diária. É só pensar no desafio de presentear alguém, e nas frustrações que isso pode provocar.  

Quando pensamos nos idealistas, que entendem ser a realidade o reflexo de nossos pensamentos, ou no psicologismo, que pensa algo semelhante, reduzindo a verdade a imagens mentais, outro exercício que enfraquece esta ideia é acompanhar o crescimento dos filhos. Quase nada segue o que traçamos. O amadurecimento deles, muitas vezes, é o contrário de fazer o que queremos, pois é ser eles e não nós. 

Se formos olhar as filosofias que enxergam mais as categorias ou as classes de pessoas em detrimento do indivíduo singular, dá para desconfiar que os autores delas raramente se apaixonaram ou amaram alguém a tal ponto que a vida daquela pessoa fosse invendável ou insubstituível. É o que move os pais a velarem os filhos doentes nas madrugadas de febre. 

Cientificismos e historicismos, de uma forma geral, querendo reduzir as ações humanas a equações que geram predições acertadas ignoram a atitude de sabedoria diária que a família nos convida para baixar a guarda de nossas certezas a fim de deixar o outro viver em nós de forma mais livre. Você mal sabe o que se esconde no próprio peito, como poderia se erguer a uma onisciência tal que abarcasse as possibilidades da vida de qualquer um?

Para fechar o elenco das principais filosofias, pensemos naquelas que pregam que todos devem buscar a felicidade em todos os momentos, tentando viver cada instante como se fosse o último, e como se ele pudesse ser repetido pela eternidade. É insustentável pelo própria ritmo da existência. 

A única forma de não devotarmos amor por qualquer coisa é sermos cercados pelo nada. Qualquer amor que nos conecte a algo fora de nós, cedo ou tarde, fecunda a consciência da perda inadiável, que é o sonho da morte que nos visita de vez em quando. Esses momentos são sombrios, gelados, opressivos. A saudade é uma filha adorável deles. A falta é a carrasca. De uma forma ou de outra, ainda que a ausência se faça, flertando com a sombra da morte, qualquer esperança de reencontro faz o amor reacender como se fosse a primeira vez. 

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Por que escolhi um herege como padrinho de meu filho?



Antes de mais nada, também sou um herege. O caçula vai se batizar na igreja católica, conforme o tronco materno. 

Não me desagrada em nada o rito. É uma igreja que descendeu de Jesus, dirigida por uma sucessão de pedros, que ainda contribui de forma importante para a fermentação da palavra de Cristo na Terra. Só que divirjo em pontos fundamentais que me apartam totalmente dela. Meus filhos deverão se aperceber da dimensão císmica disso em torno da primeira comunhão ou na adolescência. 

Conforme a doutrina católica, o padrinho deve ser alguém que preze pela condução espiritual (católica!) do afilhado até a idade da razão. Retirando o parênteses que coloquei, o padrinho que escolhi, acredito ter ele força para fazer este tentame. 

Quando anunciei à ele minha vontade, abraçou-me com tal alegria e surpresa que quase me afoga. Estávamos nadando em alto mar. Sua admiração é que sou rodeado por amigos tão santos que ele, pecador, não poderia ser uma primeira escolha. 

Esse amigo foi um dos primeiros a me apresentar o mundo como um lugar alegre e vivo, para além de qualquer igreja. Minha visão quase católica anterior me fazia ver isto aqui como uma contínua tentação para se afastar de Deus. Atava-me aos domingos a um serviço de evangelização que tomava o dia inteiro, como que me lavasse da poluição infernal da semana. 

Portador de uma liderança tranqüila, amigos gravitam em seu redor serenos. É capaz de engatar uma conversa boa, mas também de desaparecer do mundo ao tocar seu violão, seu teclado, sua guitarra, seu baixo. Seu laconismo esporádico engana. É que ele costuma se revelar apenas para o que adora. Preocupa-se com a ética, e já se esforçou muito para ajudar os pacientes de um grande hospital destas bandas. Hoje tem mais sede de filosofia do que de medicina, mas ainda, e muito, de medicina, de poker, de futebol, de surf.  

Ele me apresentou as músicas profanas mais lindas que hoje tenho no repertório. E passou por tudo isso sem um vício químico qualquer. Seu gosto pela vida nunca foi entorpecido por qualquer substância. Sempre a quis viver sóbrio. 

Certa vez ficou bêbado por uma paixão, talvez ainda como reflexo da sua pulsão de vida. A embriaguez consumia-lhe a razão, e quase incinera sua família. Em um laivo de lucidez, esforça-se para retirar das veias o álcool do perfume que o inebriava, toma todos os amigos queridos nos braços de um barco, sua esposa e os filhos no centro de tudo, canta um hino de reconciliação, pula ao mar, pia batismal de um serafim, e ressurge das águas novo. 

Até hoje, não tive nenhum amigo que submergiu tão fundo na sua própria fragilidade e voltou. 

Não espero que o padrinho de meu filho seja santo, e sei que ainda é falível demais. Mas, por tudo que já viveu e sobreviveu, não vi pessoa melhor para compadre. 

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

De uma pai velando o filho especial

Anjo do meu filho, protege-o da sinceridade das crianças. Faz dele surdo para não ouvir a chacota ou, por alguns instantes burro, para a não entender. 

Anjos dos filhos alheios, sei que já trabalham demais tentando manter estes meninos vivos até que venha a idade da lucidez, mas se Deus permitir alguma sensatez precoce, que seja feita a vontade Dele. 

Nossa Senhora de todos os anjos, vê, aquele é o menino que Tu me entregastes. Toma pela orelha todos os outros para que a ele não façam mal. Perdoa minha exigência. É que é a primeira vez que me afasto para que se sinta entre iguais. Mas, eu e a Senhora sabemos que não são. Claro, ninguém é. Só que ele ainda o é menos. 

- Que é isso! Uma queda! Como foi? Deixa eu ver. Pronto, não foi nada. 

Quer saber?! Deixem senhores e Senhora que ele se arranhe, que eles briguem, que alegria! Criança é isso mesmo.

De uma mulher ferida

Não me toques! Dói. Agora vens querer me tocar. Não. Chorei por algumas noites até que a noite permaneceu. Não vi Tua luz. 

Por que permites a sombra? Nunca deveríamos ter saído de Teu seio. Era tudo bom, dizem os padres, já que eras tudo. Inventaste de nos criar, e a criação desandou. 

Algumas pessoas deveriam não existir. Sejas sincero: até elas tu amas? Mesmo após as atrocidades que perpetram? Não deverias. Amar criminosos deveria ser crime. 

Não entendo Tua lógica. Falam do inferno. É a única criação plausível. 

Droga! Essa maquiagem não ficou suficiente. Um milagre para me recompor. 

Queria dormir, mas temo que o dia nasça. Queria que o dia nascesse, mas temo em acompanhá-lo insone... 

... queria o Senhor aqui comigo, então seria dia, e meu sono seria bom.  

Ao anjo da guarda, com reverência

Que posso dizer? Acho que as palavras seriam tóxicas para os ouvidos. Sangramos delas todos os dias. 

Recebe meu corpo em abraço. Só que a carne pesaria em tua túnica. Nossos passos fazem tremer os arredores.

E um beijo? A acidez e os germes da boca te machucariam. Cuspimos o mundo, nosso alagadiço. 

Que posso eu sem palavras, sem corpo, sem beijo? Eu, apenas eu. É o que queres? Este eu desnudo pelo sopro de Deus. Um vento cálido que tira as roupas, a carne, os ossos, o sangue, as vaidades. Exposto, me ajoelho. Porém, sinto que me tomas pela mão, e enfim, sou teu.  

De quem sofre ao seu anjo da guarda

Sei que estás aqui. Por que não me falas? Se tenho os ouvidos surdos, antes um estrondo do que sussurros. Derruba todas as louças desta casa e estilhaça os vidros nas paredes, por Deus! Preciso te ver. 

Não é justo. Os seus olhos me desnudam, e eu mal diviso qualquer vulto. Sei que estás aqui. A mudez desta casa te denuncia. Por que me acordastes às três horas? Tudo dorme, mas não meus pensamentos. 

Será se é difícil te escutar porque falo demais? Queres que me transporte para esse vácuo celeste onde tu moras? Como posso viver sem estas angústias. São o que sobrou dos amores tristes, dos únicos amores. 

Pensando bem, não quero que apareças. Deixa-me envolta pelo frio, e a escuridão me basta. Tudo isso é Deus! (talvez estas palavras valham um tapa... mas me acaricias, e na tua túnica, uma lágrima, como seria bom vê-la!)

O que mais posso pedir a ti? Que apareça! Sei que estás aqui.