domingo, 20 de novembro de 2016

Os avanços de Jesus na sociedade laica



Inspirei-me em escrever este post quando, participando de uma conversa com estudantes de medicina sobre saúde e espiritualidade, uma das participantes alegou que Deus privilegia os seus escolhidos nas vitórias da história. Algumas considerações muito importantes a respeito disso podemos fazer. 

O privilégio que Deus (o Deus judaico-cristão) concede não é tão agradável assim. Não na vida terrena. A história de boa parte dos heróis é de sofrimento, sacrifício, carregar um povo nas costas, esgotar-se, dedicar-se de corpo e alma, consumir-se por uma causa. O ápice disso é o exemplo de Jesus. 

Os hebreus viviam ansiando a vitória do próprio povo sobre os vizinhos, e, em vez de vitória perene, algumas diásporas se sucederam. Uma intervenção militar lhes devolveu algum Estado-Nação, não sem conflito. 

Mesmo com a chegada do filho de Deus, o chamado Unigênito, haja visto, o Cristo (para os cristãos), mesmo a promessa dele ficou por acontecer, caso estejamos olhando a concretização do prometido na instalação terrena de um, enfim, reino de amor. Pelo contrário, a busca da concretização do "ano aceitável do Senhor", libertando os cativos, gerou muito sangue. 

Depois de todos esses anos, ainda há quem espere, no Cristianismo, a vitória do próprio Deus em cima dos inimigos. Que Deus os esmague, os devore. E que, assim, só haja espaço para si, o escolhido, no reino terráqueo livre dos iníquos. É certa lógica desvendada pela sociologia de Max Weber, analisando a motivação dos yankees protestantes. É, de outro modo, a transposição do próprio ódio e da própria vontade de domínio para as divinas mãos. 

Acreditam que a morte foi inventada pelo pecado. Que o santo viverá rica e eternamente - na Terra. E que o juízo final acalenta um fogo eterno para onde serão lançados os reprovados. 

Bem, gostaria de dizer alguns sinais pelos quais vemos o Reino se instalando entre nós. Levo em consideração muito da sociologia contemporânea e quase nada do que essas esperanças aí de cima almejam:


  • As causas pelas quais viemos morrendo, todas em busca de um reino mundano, estão em falência: a igreja, a causa revolucionária, a pátria;
  • A família vem se tornando cada vez menor, e os pais se dedicando com mais afinco e amor aos poucos filhos. Eles passam a ser nosso motivo de sacrifício;
  • As barreiras das nações vem se pulverizando e tornando o encontro entre povos cada vez mais fácil (e difícil). O desafio, nos diz Zygmund Bauman, é construir, como nunca antes na história da humanidade, uma "comunidade da humanidade";
  • A nossa identidade de povo vem se tornando mais fluida, e cada vez mais tendo de aceitar o outro em nós, tentando entender qual o espaço que ele pode (deve?) ocupar aqui dentro;
  • A liquidez do mundo vem servindo para relativizar as crenças e destronar as castas;
  • O conhecimento vem se tornando de todos e cada vez mais sendo entregue para que todos descubramos juntos o que vale a pena;
  • A preocupação ética entrou nos imperativos da ciência e não tem mais como sair;
  • A filosofia, em toda parte, vem resgatando os sentidos das grandes espiritualidades de todos os tempos. O terceiro milênio será da espiritualidade (laica ou não) ou não será. Mesmo o materialismo, inimigo dos espiritualistas há tanto tempo, procura o espírito, a seu modo;  
  • Aumenta-se a busca das pessoas pelos valores do espírito, por isso que as reflexões morais e metafísicas (sobre o bem, sobre o mal, sobre a felicidade) voltam a chamar a atenção. No meio do século passado era a política. Já não mais;

Esse movimento não vem se instalando sob os cuidados de qualquer oligarquia. As inovações nascidas do espírito humano cavalgam sem rédeas, espaço perfeito para atuação de inteligências supremas. 

Os socialistas abominam o mercado, mas querem construir a própria ditadura, assumindo as rédeas da história (e da economia) com a própria concepção de "o que deve ser o mundo melhor", ignorando a grandeza de cada indivíduo singular. As pessoas vêem estarrecidas novos extrema-direita subir ao trono, mas tudo é fruto do medo da maioria de se deixar abrir.  E vêm a xenofobia e as leis de proteção e insulamento. Era o que Herculano Pires chamava de "os atalhos do Reino". Mas, o céu não se conquista de assalto. 

A história da humanidade pendula entre a genialidade de um povo (e o seu individualismo egoísta conseqüente) e o sentimento de pátria (e a massificação embrutecedora necessária para isso). É o desejo de liberdade de um lado e a busca de segurança de outro. Grosso modo, Atenas e Esparta. O Espiritismo aplaude o gênio e o esforço intelectual, o avanço da tecnologia, pois. Mas, espera o crescimento moral para o restabelecimento dos laços fraternos entre as pessoas. Nossa esperança e esforço, portanto, é a síntese desses dois extremos.

Não já há perfeição. Falta um tanto. Esclarecia Kardec, contudo, que "o que nos parece perturbações são os movimentos parciais e isolados que só nos parece irregulares porque nossa visão é circunscrita." Isso é um jogo de xadrez. Jesus e suas potestades contra os homens que sobem a própria ganância ao topo do mundo. Aos poucos, com tranquilidade, vai colocando os valores caducos em xeque. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Não culpe seus pais por isso



Os psicólogos tem do que se alimentar. Somos repletos de traumas, histórias mal resolvidas, entraves, dores sufocadas, frustrações. Isso está em nós, mas há um certo alívio em dizer que a culpa é de outrem. Na maior parte dos casos, de algum dos pais. Bem, a novidade é que isso não leva a lugar nenhum, vejamos porque. 

Eu entendo a fala de culpar os pais. Se levarmos as perguntas dos motivos de algo ter acontecido até a última conseqüência desta vida, paramos na nossa concepção: culpa dos pais. 

- Não pedi pra nascer!

A solução do mundo, então, seria não haver novas gerações, para que o legado da imundície humana não se perpetuasse. Brás Cubas estaria certo: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

Bem, nenhum amor acontece com essa visão pessimista.  

Tomemos os piores pais como exemplo. Não os que abandonaram o filho na sarjeta, mas os que criaram o filho como se ele fosse um abandonado. Acrescentemos violência e cenas impróprias dentro do lar. Coloque aí mais descrições tenebrosas que você poder imaginar. Poderíamos dizer que qualquer futuro criminoso que esta criança pudesse se tornar estaria justificado. Todavia, não falo aqui para justificar futuros inglórios, mas para estimular quem almeja superação. 

Se quisermos ultrapassar esse passado, cabe entender que somos dotados da capacidade de ser mais. É o que chamamos de perfectibilidade. O ser humano, desde que adquiriu na evolução certo grau de liberdade, desmantelou as lógicas deterministas. Isso significa que o passado pode ter gerado o que somos hoje, mas não impõe o futuro. Desde o momento que tomamos consciência de nós e assumimos nossa vida, com toda a matéria negra da nossa história, passamos a ser mais ou menos sujeitos dela, isto é, autores. 

O Espiritismo vem revelar outro ponto. Não estamos sós no processo de nos fazer melhor. O universo, dizia Henri Bergson, é uma máquina de fazer deuses. Deus é um foco de atração para nós. Assim como as plantas crescem por causa do Sol e em busca do Sol (fototropismo), os Espíritos evoluem por causa de Deus, porque Deus existe, em busca de Deus. Como intermediários dessa evolução, o Pai coloca emissários diversos, anjos-guardiões, espíritos amigos que nos incitam o bom proceder.

O nosso mal atual poderia parcialmente ser devido às más ações maternas ou paternas? Nem tudo está perdido. Mil fatores promotores podem nos fazer crescer. Cabe a nós ASSUMI-LOS.  

domingo, 13 de novembro de 2016

Ágape: o amor sublimado



Falar sobre ágape é dos mais difíceis temas que se pode falar, porque ele não nos pertence, não de forma fácil. Os imperativos cristãos de amar talvez sejam o que melhor apontam para o ágape. Tão distante de nós que precisa alguém nos mandar (imperativo) vivê-lo. Contudo, de fato ele existe como possibilidade do nosso peito. 


Comecemos por Deus 


Parto do absoluto para depois relativizá-lo. A melhor forma de pensar a ideia de ágape é a da criação do homem segundo a concepção judaico-cristã. Deus era tudo, porque precisava criar algo? Não precisava, mas criou. Primeiro ponto: ágape é um tipo de amor que ama sem motivo, sem necessidade. 

Deus cria do nada (ex nihilo). Sua palavra gera o universo, e o homem no centro dele. Importa lembrarmos que o homem, na tradição judaico-cristão, é a criatura a que Deus reservou o destino de viver conSigo. É o Grande Pai cuidando do filho: lhe concede terras, animais e até uma bela esposa. A visão do Gênese é de uma comunidade patriarcal, claro, mas depois entendemos que o destino de estar ao lado de Deus é para todos, homem e mulher. Então, Deus cria do nada. Segundo ponto tirado da palavra nada: ágape é um tipo de amor incondicional. Não há algo anterior ou um interesse prévio que justifique amar o outro. Terceiro ponto tirado da palavra criar: não é preciso mesmo que o outro exista para ser amado, ágape é um amor que concede existência ao outro. Se Deus era o único existente, e criar o homem foi um ato de amor, ágape é um amor que gera (concede existência) amando. 

Há uma visão judaica da criação de Deus que nos dá uma pista ainda mais preciosa sobre o ágape. Chama-se Tzin-tzum. Chama-nos a atenção que o Tudo não pode criar mais qualquer coisa, pois já é tudo. Portanto, para Deus (o Tudo) criar algo teve de se esvaziar (nadificar-se) um pouco para dar lugar à criação. Quarto ponto: ágape é um tipo de amor que está aberto ao sacrifício de si. O que vemos na tragédia de Jesus, o homem-Deus que desceu à Terra para dar sua vida para a redenção do homem adâmico, é a materialização do tzin-tzum


O que tudo isso tem a ver com nossa forma de amar?


Vamos para a relativização do absoluto, ou melhor, a secularização dele. Como podemos enxergar ágape entre nós?

Primeiro ponto: amar sem motivo. Eros tem motivo para amar, embora muitas vezes pareça imotivadamente visceral. Ou é a forma, ou o cheiro, ou o jeito, o andar, o sorriso, algo que afeta os sentidos. Amar sem motivo é algo gratuito. No nosso cotidiano pode aparecer a posteriori: amar o companheiro quando já não temos mais motivo para amá-lo. Amava-o porque era jovem, mas envelheceu; porque era forte, mas enfraqueceu; porque era sadio, mas adoeceu; porque era rico, mas empobreceu; porque era belo, mas tornou-se feio. E, provavelmente, o amor mais difícil: porque era amável, mas tornou-se um bruto. 

Segundo ponto: amor incondicional. Dialoga com o primeiro ponto. É a extensão do amor gratuito. Poderíamos nos ver dizendo: "Amo-o contanto que ele cuide de mim ou dos meus filhos". Dizer simplesmente "Amo-o" é o que esse segundo ponto nos convida a fazer. Veja este exemplo de minha vida. Quando meu primeiro filho nasceu, papai estava morto já iam cinco anos. Desejei por um minuto que o pequeno fosse papai de volta à carne. Minha esposa me chamou a atenção: "Você não pode colocar esse peso sobre ele. Deve amá-lo pelo que é agora, não pelo o que possa ter sido." Vê? "Amo-o contanto que seja meu pai". Não. "Amo-o". 

Terceiro ponto: amor que concede existência ao outro. Acontece quando amamos mesmo sem retorno, mesmo que no outro não haja possibilidade aparente de amar de volta. Quando o companheiro se acidenta e entra em demência grave. Quando, perde a sanidade mental e o olhar perde o brilho. Mas também, e talvez é a forma mais fácil de ver este amor, quando se ama o filho recém-nascido que pode morrer amanhã sem ter chegado na idade de demonstrar seu amor. 

Quarto ponto: o amor que está aberto ao sacrifício. Dialoga com o terceiro ponto, mas esclarece a natureza de amar um outro que não nos ama: é sacrifício. Todas as situações que citei são vivências dolorosas, caminho de espinhos, crucificação. O desafio está em conseguir viver esse amor sem perder a alegria. Cair na tristeza e na desesperança é o mais fácil, o mais lógico. Aliás, não amar dessa forma que expus aqui é o mais natural, o mais humano. Esse amor é de Deus, por isso comecei falando Dele. Todavia, é o desafio que Jesus nos propôs já vão dois milênios, assumindo a condição de sermos filhotes de Deus

No post anterior, eu disse que esse é um tipo de amor que pode salvar os outros dois quando tudo parecer perdido. Quando se vê que o outro está impossibilitado de dar algo de volta (quebra do eros), quando se vê que o outro te traiu (quebra da filia), ágape surge como possibilidade de o amor ainda dar certo. Para isso, ágape pede paciência, resignação, concede força, perseverança. 

Sobre o tempo dele. Lembram? Eros era instante que se dilatava. Filia, tempo que se contraía. Ágape vive na dimensão do eterno (o tempo anulado). É o tempo que Deus espera pelo nosso amor. 

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O poder da amizade



Havia falado sobre eros, da última vez. Atenho-me agora sobre filia (amizade), que é considerado por alguns que pensam sobre o amor como sendo o desenvolvimento de eros. Pelo menos para quem gostaria de escapar da realidade movediça deste e experienciar algo mais fiel. 

Vamos começar falando sobre amizade. Certa feita um grande amigo meu encontrou uma jovem em uma viagem que estávamos fazendo. Ele disse que sentiu algo fantástico no diálogo com ela: o silêncio também era prazeroso. Ele não começou nenhum affaire. Entendeu que ali nascia uma grande amizade.

A amizade tem essa face do prazer no silêncio e da perpetuação da relação mesmo na ausência. Com esse mesmo amigo de que lhes falei ocorreu o seguinte: passamos, certa feita, meses sem nos falar (silêncio e ausência), quando nos encontramos conversamos como se a conversa houvesse terminado ontem, e prosseguiu por horas. Mesmo ausente nos fazíamos presentes um ao outro em nós. 

Cada amor tem o poder de mexer com o tempo, cada qual ao seu modo. No eros, os minutos parecem horas. Na filia, as horas parecem minutos. No ágape, veremos ainda...

Mas, desde já conseguimos perceber como filia pode salvar eros da sua fugacidade, coroando-o. Algumas amizades parecem não poder se misturar com o sexo, sob pena de se desencantarem. Todavia, nenhum casamento dura se os esposos não se tornarem amigos. O cotidiano, e os desafios da vida à dois, que tornaria o eros solitário estéril é o meio propício para o desenvolvimento da filia. Lá era um perdendo-se no outro, aqui são os dois encontrando a potência de cada um para, juntos, mover a vida. É o que venho experimentando com minha esposa com o novo filho nas noites de amamentação. Ela amamenta, eu coloco para arrotar e troco a fralda. Ela coloca o menor para dormir, eu, o maior. As noites que geraram os meninos na entrega de duas pessoas uma para outra testemunham o cuidado com os meninos na entrega de nós dois para eles. 

- Mas, isso é a morte do eros! - diria alguns. 

Não precisa ser. Devemos lembrar do caráter ígneo dele e fazer com que o encantamento e a surpresa quebre a rotina de vez em quando. De fato, os filhos e o sustento não permitem a consumação do prazer de eros a cada instante. 

De todo modo, esse é o maior desafio lembrado pelo amante: "nunca mais tivemos tempo um para o outro". Um velho adágio francês nos diz: "Não se pode ter a mulher bêbada e o tonel cheio". Conciliar os amores não é um desafio para o qual tenhamos a resposta final. 

O motivo pelo qual vários casamentos estão terminando é a superioridade da falta que eros provoca sobre o prazer doce de viver a amizade amorosa. 

No próximo post, falo sobre um amor bem diferente destes dois, mas que, creio, abre o homem e a mulher para uma dimensão que nos resgata quando imaginamos estar tudo perdido. 

domingo, 6 de novembro de 2016

No princípio era o Eros



Certa feita um amigo pediu que eu lhe indicasse um livro que falasse sobre o Amor. Lembrei-me do "Pesquisa sobre o Amor" de José Herculano Pires, que deixou para escrever algo exclusivamente sobre isso ao final da vida, para lhe conferir autoridade. Contudo, penso que não precisamos ir até o final da vida para pensar sobre. Vou começar a fazê-lo a partir de agora. 

Parto do debate grego sobre o assunto e divido didaticamente essa primeira tentativa explicativa em três partes: eros, filia e ágape. Neste, falarei sobre eros

Muito embora Platão tenha feito residir eros no desejo, que é o amor do que falta, vou falar também sobre o gozo, que é o amor do que flui. Daí terei de falar de sexo, e o conteúdo pode ser que fique impróprio para alguns. Se há três coisas que não se consegue olhar diretamente sem se ofuscar é o sol, a morte e o sexo. 

Falo do eros primeiro porque de fato ele é primordial, ao menos em nossa existência. Que tenhamos sido criados pelo ágape de Deus, não exclui que tenhamos nos desenvolvido e nos multiplicado via eros

Vamos começar pelo seu aspecto negativo: o da falta. Sentimos falta da pessoa que desejamos. O sexo nos coloca em um gozo tamanho que a ausência dele traz lembranças e vontades de retorno. É a lógica do prazer. Ela pendula do gozo à falta. A perpetuidade não é da sua natureza. Nenhum gozo é eterno, torna-se tédio. Depois do orgasmo, seja único ou múltiplo, o corpo pede repouso para em breve sentir falta. Esvaziar-se do prazer é a condição para sentir prazer de novo, uma outra vez. 

Eros também está atrelado às formas, ao belo que se esculpe na matéria. Podemos desejar o feio? Sim, quando o Espírito consegue esculpir (por um esforço da razão, por uma sublimação do coração ou por um milagre de confluências) o desejável na forma que parece desprezível. Outro diria que é uma questão de gosto e subjetividade. Deixemos essa polêmica de lado, por hora. 

Na nossa adolescência, sensíveis demais para enxergar qualquer essência, apaixonamo-nos pelas formas dos outros a acariciar nossos sentidos. Considerando forma como oposto à essência, não excluo aqui o cheiro e o jeito de o corpo estar no espaço e nele se mover: o rebolado da mulata, a ginga do malandro, a pose do sedutor, a coluna ereta do fisiculturista.

Muito embora o eros seja movente, o que o deixa um insatisfeito incorrigível, não podemos ignorar a grandeza do gozo. O bom sexo tem a condição de querer presença. Não conheço aquele que consiga um bom sexo pensando no que poderia ter sido ou no que poderá acontecer: frustração de um lado, ansiedade de outro. Eros requer entrega, baixar a guarda, respirar o instante e o parceiro. Desnudo o eu para se misturar no outro. Meu fluido no seu, e o inverso. Fluímo-nos uns nos outros, como que derretidos. 

Falei ao início que eros é primordial, sim, e nos devolve à nossa realidade primeira: de não sermos mais indivíduos, mas tudo. Defesas expostas, naquele recanto, sob quaisquer lençóis ou sem eles, eis a verdade selvagem do que somos. 

Há mesmo uma violência nessa fruição. Pode descambar em agressão. A civilidade pede que não o seja, mas desde que inventamos a intimidade, o controle do que ocorre entre quatro paredes só vira caso de polícia mediante a denúncia, e ainda assim se houver alguém que se reconheça vítima. De todo modo, há uma violência no ato sexual, como o há no encontro do rio com o mar, na perfuração da terra pelo broto, no flagelo que o mar faz nas pedras, no sulco que o corpo d'água escava na terra ao se deitar nela, e a terra embebida de rio, as placas tectônicas gerando maremoto em um beijo. O intercurso sexual sangra, provoca fissuras, e a dor por ele provocada, só não se fala dela, porque o prazer a encobre. 

O desafio que o casamento e a fidelidade impõem ao eros é como manter o desejo aceso, já que sua natureza é ígnea, portanto, instável? Como não perder o prazer e ainda amar duradouramente? É o que filia ajudará a responder. 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Filhotes de Deus



Complementando o post passado em que falei sobre nossa potência divina, atualizada no caminhar da existência, pensei que a metáfora do filhote de Deus seria ilustrativa. Deem-me licença para a antropomorfização didática. 

Em toda a natureza o semelhante gera o semelhante. Partículas infinitesimais se partem em outras. Pedras enormes viram cascalho, pequenas pedras. Plantas brotam seus rebentos. No reino animal, cada espécie gera sua continuação. 

A visão espírita do espírito é algo complexo. Cheira a alquimia e ocultismo, mas está lá em O Livro dos Espíritos para quem quiser ler. Disseram as Comunicações a Kardec, que Deus gera matéria e espírito. Aquela sendo o arcabouço para o desenvolvimento deste, até que este alcance a perfeição. O espírito nasce pobre e ascende resistindo aos vários estágios que a matéria oferece. Dessa forma, temos espíritos desde o reino mineral até o homem. Do homem mais selvagem ao mais civilizado. Do mais inocente ao mais cruel. A vida cósmica gira em torno de fazer crescer o espírito, fazê-lo florescer e frutificar.  

O que flerta com a filosofia alquímica é a história de transformar qualquer metal fosco no ouro do espírito. Para o Espiritismo seria transformar o espírito mais simples no Espírito mais complexo, ao qual poderíamos chamar de deus. Todo politeísmo é uma manifestação primordial dessa realidade espiritual de que o universo é habitado por infinitos deuses. Os panteísmos guardam essa certeza que cada elemento do universo traz a divindade em si. 

O espírito é o filhote de Deus. Como um pai - imagem que tomamos emprestado das palavras de Jesus - Deus cria (no sentido paterno-materno do termo) seus filhos. Ensina-lhes a caçar o próprio alimento e sobreviver no mundo. O intuito é entregar-lhes para si mesmos. 

Essa visão não é isenta de obstáculos filosóficos. Como um filhote de Deus pode carregar o mal em si, produzir o mal? Não falo do mal como má interpretação das nossas opiniões, mas o mal ativo, cruel, que excede os limites da necessidade. Não é apenas matar algo para se alimentar e sobreviver numa justa cadeia natural, mas dizimar uma espécie inteira - por diversão. Não é prender o inimigo de guerra, ou matá-lo antes que ele nos mate, mas torturá-lo mesmo que já se tenha chegado à certeza de que não se terá mais nada com qualquer dor adicional. Como o livre-arbítrio, dádiva de Deus aos seus filhotes, pode ir até o ponto de ameaçar a existência da própria criação? Como pode haver a possibilidade de excesso em um universo criado pelo Todo Justo? 

A filosofia atéia pega o caminho mais fácil e diz que Deus é desculpável por tudo isso pelo fato de não existir. Várias escolas filosóficas contemporâneas nos dizem que tudo o que se aproxima da explicação última é impossível de pensar, mesmo Deus, que não é razoável apenas por ser fora de cogitação. Antes de Deus, o mistério. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O deus em mim




Ao contrário do que alguns imaginam, essa frase não é uma profanação. Poderia tê-la colocado ainda mais intensa: “o deus que sou”. E ainda assim não seria blasfêmia. Ilumino neste texto a potência que carregamos, ainda que, hoje, sejamos quase nada.

Vamos partir desse ponto: somos quase nada. O conjunto de vulnerabilidades que nos cercam e que nos fragilizam constitucionalmente é tão grande que a divindade parece ter escolhido qualquer lugar para se abrigar menos em nós. Isso vai desde nossa gestação, com suas múltiplas possibilidades de aborto, até toda nossa vida, com todos os pontos de adoecimento. O normal seria morrer. Viver é uma resistência.

Vamos nos focar, então, nesse outro ponto: viver é uma resistência. De cada desafio de morte, saímos maiores. Um aprendizado se acomoda na teia de aprendizados anteriores. Haveria um fim nisso para além de simplesmente sobreviver? Se considerarmos a espécie, estamos aprimorando o arsenal de habilidade da nossa. Se pensarmos em indivíduo, e se este for mortal, é uma inutilidade. Mas, a imortalidade nos dá um horizonte: a perfeição. O limite de todo melhoramento é a perfeição. A recompensa dela seria a felicidade.

Essa mensagem é retórica para aqueles que já são movidos pelo impulso de crescer, inovar, competir. Mas, ela se torna uma preciosidade para aqueles que acham estar perdidos no mundo, que não foram feitos para viver, que são destinado a derrota.

Somos frágeis, é verdade. Contudo, temos em nós a potência de um deus. Desabrochar virtudes é a conseqüência de caminhar. O Espiritismo não entende o ser humano como já sendo um deus. Aponta nossa perfectibilidade. Saímos do átomo, rumamos ao arcanjo. Isso tira o peso de termos que ser perfeitos desde já, como que por um shift mental. Isso nos convida a olhar a vida na perspectiva da eternidade.

O Universo é uma grande escola. O Espírito transmigra na matéria (nos mais diferentes reinos e planetas) em busca de lições. Com trabalho, solidariedade e tolerância chegaremos lá.