segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O demônio em mim



Quando lerem esse título, alguns vão dizer "não falei que espíritas são possuídos!", outros "hum! vai explicar sobre o fenômeno da possessão!". Mas, não, e não. Queria falar sobre a condição humana de termos o demônio em nós, bem como o deus. De sermos o demônio de nós, e precisarmos de Deus. 

Eu falo isso propositalmente depois de ter escrito sobre um caso de obsessão levando a pensamentos suicidas. A pergunta que nos vem é por que alguém consegue entrar em nossa mente e nos incitar a algo. Resposta: porque o que ela diz já está em nós. Por vezes latente, até mesmo sufocado. Então, qualquer inimigo que descubra nossa fragilidade, pode se valer dela contra nós. 

A grande maioria das obsessões não insere dados novos em nossa mente. Elas resgatam fragilidades, e as colocam em evidência. Quanto mais santinhos nos achamos, pior para nós. Não estamos enxergando a debilidade que se esconde no peito. Importa conhecermo-nos profundamente - potências e falhas - se quisermos crescer e vacilar o menos possível. 

Homo sapiens demens. Assim deveríamos nos reconhecer. Somos contraditórios. O que nos separa de alguém que perdeu o juízo é uma certa quantidade de passos. 

A tradição judaico-cristã aconselha a humildade com veemência. Devemos nos reconhecer pequenos. Por vezes ela é mais intensa e aponta nossas chagas, seres pustulentos. Só assim é que nos abrimos para caminhos de redenção. Tanto mais Deus se faz presente quanto mais estamos afastados Dele. Para encontrá-Lo não basta reconhecer que Ele existe, mas que você está sem Ele. 

Não é à toa que encontramos isso ao final do "Pai Nosso": "Não nos deixeis cair em tentação". Pois somos instáveis e passíveis de queda. Precisamos de Ti. 

* Leia também: "O deus em mim"

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

(Parte 2) Diálogo com um jovem pensando em suicídio



[Do diálogo passado ele filtrou que eu houvera ratificado seu estado de desconectado do mundo. Assim vinha sendo a maior parte de nossos diálogos. Eu falava um mundo de boas coisas, ele ouvia o local que mais se afinava com a depressão. Voltou a me procurar.]

Estou perdido. Me ajude. Não sei para onde ir. Não faz mais sentido nada do que vinha fazendo. Não vejo sentido em fazer qualquer outra coisa. 

Preciso que você tenha pelo menos alguma esperança antes de lhe orientar qualquer norte. Como está seu tratamento médico? 

Estou em uso de quatro drogas. Já estou mesmo em eletrochoque e não vejo melhora. 

Nada? Nenhuma mudanca sequer?

Pra falar a verdade - tenho até vergonha de confessar - antes, acordar para mim era um suplício, porque acordava mais um dia de nada a melhorar. Nos últimos dias (já se foram seis sessões de eletrochoque), uma nesga de esperança reacende ao amanhecer, mas me vem um medo de dar tudo errado, e me vem uma angústia de que, melhorando, as pessoas que cuidam de mim me abandonem. 

[Esqueci de dizer para ele que vi nessa fala três sinais de melhora: 1. a esperança; 2. o reconhecimento de que é cuidado; 3. o medo de perder as pessoas. Dias antes havia dito que tudo lhe era indiferente como parte de sua síndrome de desconexão do mundo.]

Amigo, sei que pode parecer difícil, mas cada vitória tem que ser festejada, por menor que seja. Sua mente veio sendo esmagada pela ansiedade da vontade do mundo. Essa vontade traz um passado que pesa e um futuro que cega. Permita-se viver hoje. Lembra-se da prece do Pai Nosso? "O pão nosso - de cada dia". Permita-se recomeçar hoje e esteja aberto, seja grato - por cada dia. 

Meus pais querem que eu retome tudo e venha a ser o que eu vinha sendo. Mas, tenho ódio do que eu vinha sendo.

[A automutilação a que vinha se submetendo, cortando-se em partes não letais, parecia ter três motivos: 1. sentir que ainda podia sentir alguma coisa; 2. mostrar que odiava a si mesmo; 3. punir-se por tudo o que estava acontecendo. Perguntei se também era uma forma de maltratar seus pais. Ele me disse que não.]

A tradição cristã (e não só ela) nos dá uma perspectiva extraordinária dos renascimentos. Todo convertido tem seu passado esquecido, ganha um novo nome, para recomeçar a vida redimida. O Espiritismo revela que isso acontece mesmo entre vidas: esquecer o passado, ganhar novo nome, recomeçar nova vida. O que vinha sendo a sua vida era odiável? Recomece, pois! Quando suas forças renovarem, Deus permitirá que o passado volte para que dê conta dele. Mas, então, será um outro homem, mais forte, mais sábio, enfrentando o homem velho. 

Sobre seus pais, parece que vem chegando a hora de você se tornar homem e ter suas próprias decisões, arcar com o seu sim-sim-não-não. Digamos que esse enfrentamento te custa ainda muita energia. Então, calma, respira fundo, recomponha-se, persista no tratamento, e seja grato pelo "pão nosso - de cada dia". 

Às vezes penso que eu vim errado pro mundo. Que sou um erro. 

Atualmente, duas grandes visões dominam nosso horizonte ocidental: o Grande Deus Todo Bom e Todo Sábio e o Nada sartreano. O primeiro não comete erros, o segundo não gera nada. De um jeito ou de outro, não há como você ser um erro. Ou você não encontrou seu caminho ainda (o caminho certo que Deus reservou para você), ou você é o autor do seu próprio caminho. De todo modo, a busca de se encontrar é a mesma. 

Diálogo com o Espírito que o induz ao suicídio


Parte de sua sombra está esmaecendo. O garoto entrevê esperança ainda que distante. Queria pedir para não se enfurecer com isso. Da mesma forma que ele pode emergir das trevas, você também pode. 

Vamos pensar no depois. Ele morre e se torna seu subjugado. E depois? Você o tortura de mil formas físicas e verbais. E depois? Você o joga no deserto das aflições para que aves de rapina o devore. E depois? 

Em ele sendo imortal, cai-se no tédio. Depois dele, haverá algum outro na sua lista de caçados? Que qualidade de felicidade é essa sua que se ergue sobre a infelicidade alheia?

Desejo que o manto do ódio que encobre sua visão também esmaeça e que você passe a ver, ainda que distante, a plenitude da vida para além destes mesquinhos acertos de conta.

Deus aceitaria um demônio em seu Reino?

Um demônio não, mas você, um filho temporariamente equivocado, certamente. 

* Texto baseado em um conjunto de diálogos com pessoas em sofrimento atendidas ao Lar Espírita Chico Xavier.


domingo, 23 de outubro de 2016

Diálogo com um jovem pensando em suicídio



Sinto-me deslocado. 

Essa sua sensação de já não estar entre nós, ver tudo passando como um filme chato, seus sentimentos ilesos ao que acontece conosco, é parte dessa verdade de que você é um Espírito para além deste corpo. Seu Espírito parece estar deslocado. O corpo emite sinais ao Espírito distante.

Se isso fosse apenas um vôo, te pouparia da minha fala. Mas, se anda gerando vontade de morte, não posso me abster de tentar te convencer do contrário. Toda vontade de morte é doença. Precisamos ir em busca do que te devolve vida, potência de existir.

Por que insistir em mim? 

Conheço seus familiares. Estão aflitos. A aflição em perder alguém é uma das formas de amor. Um amor que se acalma com a presença do ser amado. Sofre com a distância. Há, de outro modo, nas nossas crenças (e na comunicação dos Espíritos), a ideia de que não é boa coisa tirar deliberadamente a vida. O estado de alma depressivo se perpetua depois da morte. Esse inferno na consciência permanece e queima na pele do Espírito como se estivesse em carne viva.

Por que Deus fez um universo com sofrimento?

Não sei. Sério. Não sei. Ainda não consegui entender completamente a cabeça de Deus. E, sinceramente, não sei se conseguirei nos próximos dias. O universo que Deus fez é este aí que estamos vendo. Há belezas estonteantes que a sua visão cinza atual não enxerga. E há a feiúra que sua visão acizenta mais do que deveria. Queria te convidar a pintar os olhos. Não se pode colorir a feiúra, mas há quem peleje por saná-la. Agora não. Mas, podemos vir a ser destes últimos, um dia.


Diálogo com o Espírito que o induz ao suicídio


Você não aparece. E se mistura nos pensamentos do rapaz como se fosse os dele. No início até poderia se distinguir, mas hoje a relação que você conseguiu construir é tão emaranhada que o pobre pensa serem uma só e a mesma pessoa.

Não posso te censurar. Sinto que vocês dois se amaram muito em outra vida. Um amor traído, não foi? Hoje virou vingança. Ainda é amor, não é? Mas, adoecido. 

Se ao menos ele acreditasse em reencarnação e que os Espíritos podem atuar em nossa vida, eu poderia convencê-lo a lutar contra você ou te perdoar e pedir que se pacifique. Mas, não acredita, e pensa que tudo o que chega no coração vem dele mesmo. Sente-se mau por pensar em se matar, em se cortar, em se intoxicar. E ser alguém mau o fere ainda mais do que a faca. 

Por que Deus permitiu que nós nos reencontrássemos e déssemos seguimento a essa simbiose de morte? 

Suponho que Ele queira ver os filhos se entenderem. Que os nós sejam desatados por nós. 

Vê. Você não é um demônio. É apenas alguém precisando ser amado. E será. 

(Continua)


* Texto baseado em um conjunto de diálogos com pessoas em sofrimento atendidas ao Lar Espírita Chico Xavier.