sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Suicídio em outra visão espírita



Digo suicídio em outra visão espírita, porque acho que impera em nosso meio um discurso muito pouco consolador sobre esse tema. 

Dei uma palestra cujo motivo da fala foi uma pesquisa feita no público geral dos Estados Unidos, veiculada pelo psiquiatra Stephen M. Stahl em seu livro sobre "Psicofarmacologia: Depressão e Transtornos bipolares". Ela mostrava que a grande maioria da população achava que a doença mental era devida à fraqueza emocional, culpa da vítima ou conseqüência de um comportamento pecaminoso. Isto é, a grande maioria absoluta, culpabilizava a pessoa que estava sob o domínio de alguma doença mental, como se ela fosse completamente senhora de seus sentimentos a fim de poder saná-los a qualquer momento com alguma força de vontade ou um retorno para o que consideram caminho virtuoso. 

No meio espírita essa opinião é representada, por exemplo, pela crença de que, se a pessoa está doente, é conseqüência direta de suas ações nesta ou em outra vida. 

Tentei explicar, então, que a coisa não era tão simples. Se a questão fosse de mera força de vontade ou de um comportamento santo, a nobre Madre Teresa de Calcutá, no livro póstumo que revela sua escuridão de alma, "Madre Teresa, venha, seja minha luz", não teria sentido isto:

"Estou simplesmente cheia. Não sabia que o amor podia fazer alguém sofrer tanto. [...] Meu coração está tão vazio. Tenho medo de que o retiro seja um prolongado sofrimento, mas é melhor não pensarmos nisso. Quero fazer um retiro fervoroso."

E outras revelações bombásticas que mostravam uma santa realmente da escuridão, como se ela tivesse se misturado com as dores do mundo.

Poderia ter falado ainda da dor que Jesus sentiu antes de ser crucificado, que o evangelista diz ter ele porejado sangue de seu corpo, tamanha era sua aflição (Lc 22:44). Jesus, aquele que, para os cristãos, é considerado o mais puro homem, ou melhor, o deus-homem. 

Nossa sociedade precisa, ainda hoje, mudar seu olhar para com os portadores de sofrimentos mentais,  deixar de vê-los como fracassados ou birrentos, mas como pessoas cujos motivos mais íntimos de dor estão enterrados em séculos de existência e que, portanto, a solução não deve vir do dia para noite, de imediato. 

A iluminação interior súbita pode ser uma crença budista ou católica, mas não é a espírita. Acreditamos que o processo de cura de um indivíduo, isso sim, não salta na natureza, mas é um construto tão milenar quanto a gênese da dor. Não cabe a nós julgar ninguém ou, como se fôssemos milagreiros, exigir que a pessoa levante e ande, mas sim apoiar, acolher, e facilitar a caminhada daqueles que doem ao nosso lado. 


O áudio da palestra encontra-se temporariamente disponível aqui:

domingo, 13 de setembro de 2015

É preciso perdoar Deus


Clarice Lispector, em 1970, publicava um conto, no Jornal do Brasil, intitulado Perdoando Deus. Nele descreve o sentimento de um êxtase estranho em que se vê tomada por um amor por tudo o que existe - Deus sendo tudo o que existe - como se fosse a mãe do vasto mundo. Amar à Deus de forma solene é o que a religião nos ensina. Mas, como sendo dele a mãe?! Isso é profanação. De súbito, topa com um rato morto a lhe quedar para o outro extremo do divino, desce aos infernos de si. É dessa viagem psico-astrológica que tira a seguinte dedução:

"Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda."

Depois disso ela vai percebendo que é impossível amar o mundo sem aceitá-lo por completo, no que há de esplêndido e de grotesco. Talvez o asco contra o podre do mundo, e de Deus por conseguinte, é o desprezo por esse outro lado de si. 

Entretanto, a foto que postei no início dessa reflexão não parece se encaixar nesse movimento de alma. Dirão os teólogos mais radicais que parto do lugar errado: o que é preciso perdoar é o homem que provoca toda essa miséria. Todavia, o lugar filosófico é o que me importa: quem criou o homem e sua pulsão de morte?

Daí que, ao contrário de todos os movimentos religiosos que partem sempre da visão de Deus olhando para o mundo, eu me coloco na visão dos transeuntes olhando para o universo e assim perdoar Deus. Sei que a profanação dessa frase é sem medida. Contudo, o movimento de perdão é justamente o movimento cognitivo-emocional de se abrir para o outro em toda a sua alteridade, o que significa em toda a sua estranheza. 

- Por que o Senhor silenciaste? - pergunta o ortodoxo papa emérito Bento XVI quando visitou o campo de concentração do holocausto judeu em Auschwitz. 

Infelizmente, não venho neste post trazer uma resposta plausível. Não quero falar das dívidas que arrastamos da encarnações pretéritas, sob pena de menosprezar a dor. Quero, de fato, deixar o coração aberto, e não mergulhar em alguma "matemática errada". Coração aberto, coração sangrando. 

Na temática do perdão à Deus, meu filósofo materialista Sponville disse que a única desculpa é Ele não existir. 

Não quero desculpas. Desculpar é por demais exato. Perdão é a única palavra que encontro para o movimento da alma que envolve carinhosamente o agressor e deixa-o existir dentro de nós, talvez mesmo conduzindo-nos a pensar que nós tenhamos sido o agressor. Ela, enfim, e então, nos confunde.  Querer que Deus seja a imagem e semelhança de tudo o que eu acho que Ele deveria ser, eis a grande prepotência humana, a verdadeira profanação. É o que Clarice enxerga ao final:
"Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Sobre a importância da igreja como fundamento



Feito palavra ao vento, apenas para amenizar conversas de corredor, falo sobre meus problemas respiratórios de repetição à uma colega de plantão: são coisas que trago de outras vidas. Ela responde de imediato. 

- Isso não existe, Allan!

Quando a incitei a falar os motivos que a levavam a afirmar tão categoricamente sobre a inexistência das reencarnações de todos, pensando que ela ia começar os mesmos argumentos de sempre - porque não nos lembramos, porque a população cresce, etc. - ela me veio com essa:

- Como é lá no Espiritismo? Você freqüenta? Qual o fundamento?

Falei do meu afastamento destes últimos tempos, desde que aumentamos, eu e minha esposa, nossas atividades médicas e de pais de um menino novo. No que ela replica:

- Você nem freqüenta direito!

Foi assim que me dei conta que, de certo modo, para ela, é fundamental não apenas conhecer a doutrina, mas participar da igreja para falar com propriedade. Igreja não no sentido institucional, estrutural, mas no sentido de eclésia, assembléia, conjunto de pessoas que fazem a coisa ser humana e, de tão irmãos, divina. 

De fato, essa colega é uma moça devota. Antes de dormir, uma prece e um terço. Durante o plantão, a calma e a serenidade de quem tem o apoio de toda uma irmandade em si. 

Levo isso para casa. O reaquecimento da saudade que tenho dos meus, daqueles que são meus fundamentos. Difícil viver sem uma igreja de amigos que se religam por assuntos comuns que nos ascendem a muito mais do que essa esfera de afazeres cotidianos. Nesse sentido, de fato, fora da igreja não há salvação, mas é que o coração fica menor longe deles.