quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Pés de barro

Tome cuidado, meu Espírito. Tu fostes elevado pelos humanos sonhos a um altar que não te pertence. É dos sonhos humanos este altar. Teus pés de barro, não deves esquecer. Mais dia, menos dia alguém os quebrará. Menos sofrimento será se o já tiveres feito antes. Mantém esta alma na tua lama. Não porque sejas verme, mas porque aí o barro é maleável para a vontade das mãos do Grande Oleiro. Se o contrário acontecer, e te deleitares com as honras que te ofertam, não surpreenda-se com as lágrimas de sangue que escorrerem pela tua face apedrejada pelos escombros de ti. É com esse sangue que serás renascido no humilde lugar de ser o que se é - tua manjedoura. 

domingo, 20 de outubro de 2013

O tempo da salvação




Há espíritas amigos meus que, apaixonados pela doutrina, alegam que uma vez espírita, sempre espírita. O espírita de verdade permanecerá assim. Problematizam socraticamente o conceito de verdade. Aquele que conhece o Bem não mais se deixa levar pelo Mal. É uma questão de ignorância e conhecimento, verdadeiro conhecimento. 

Muito embora eu me sinta “para sempre espírita”, tenho de admitir que está tatuado em mim ter nascido neste berço, ter mamado nestas palavras, ter dormido ao som de nosso evangelho, ter trabalhado intensamente na adolescência para as atividades algo recreativas - muito engrandecedoras - do meio espírita que frequentei, frequento, frequentarei. As mais caras amizades, as mais doces experiências, os consolos que mais lavaram a alma estão aqui, ali, acolá, e, por todos os lados, dentro de mim, Espiritismo. 

Não posso julgar quem veio até nós e partiu para outro lugar. Foi o que um dia ouvi de um senhor, à época espírita, que teve sua mulher às portas da morte e não se agradou em nada com a visita de seus correligionários que tentaram lhe consolar falando sobre as belezas do pós-morte. Todavia, ele a queria viva. 

- Mas, tudo é vida! - respondem os espíritas alegres e inscientes das dores que amarravam o peito daquele senhor.
- Viva aqui. Não dentro de mim. Fora, mesmo. Nem lembrança nem vulto. Mas, corpo e presença, para que a possa ter comigo!


Os evangélicos foram mais felizes na abordagem. Aproximaram-se em suas visitas usuais aos pacientes graves de hospital e retomaram o que acreditam ser o exemplo de Jesus que trazia sempre uma salvação para todas as horas. Ela se curou. O senhor se tornou evangélico. 

Como competir com a ressurreição? É simplesmente tudo o que queremos: o nosso ente amado para sempre aqui, não dentro de nós, mas, fora, para que possa ser conosco. Jesus não trazia promessas. Essa função menor era missão dos profetas. O Rabi trazia certezas, portava o “enfim”. 

Mas, poucos são os escolhidos de receber a graça súbita de milagres que restabelecem por completo as forças vitais. Raros os que a alcançam sem uma via crucis. Não conheço um. A grande maioria dos sofridos são seres cronicamente doentes, acorrentados a dores, desesperados não mais por cura, mas por um alívio qualquer. 

Acredito muito no “tempo que é chegado”. Cada coisa tem sua semeadura, ruptura, exposição solar, crescimento, seu desabrochar, frutificar, envelhecer, descascar, enrugar-se, curvar-se ao chão, semear-se para, no terceiro dia, ressurgir, pairar nos ares da vida, cair dos céus no útero da terra-moça, e renascer. Creio que as curas vem em seu tempo. E se um deus decide colocar a mão sobre um doente, o tempo que leva para sua sagrada pele roçar a do moribundo é o da preparação. Nesse intervalo acontece tanta coisa: negação, revolta, barganha, angústia, tristeza, repúdio, esperança, desespero, genuflexão, exaustão, entrega, aceitação. Não vejo porque a desejada cura deva ser a do corpo perecível que hoje é e amanhã (sempre há um amanhã) não será. 

Quando um deus nos toca é feito um raio. Há quem saia vivo, e manchas lindas sinalizam sua passagem pela pele. Há quem não suporta e morre. A essa morte chamo libertação. 

Talvez a lição que os espíritas deveriam ter praticado com aquele senhor é a de não ter uma resposta pronta, mas a de captar a resposta histórica contida em cada dor. Não para que pudéssemos continuar com um adepto, mas para que não tivéssemos perdido a consolação mais certa. Graças a Deus que os evangélicos chegaram a tempo!

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Angústia cristã: entre as obras e a fé




Estou iniciando a experiência de pai. Coisa louca, sorriso grudado na boca por uma coisa pouca que, agora, vale tudo, a quem dei pra chamar de filho. E o amor entre mim e sua mãe cresceu. Estamos juntos mais que nunca para dar suporte ao pequeno. 

Eis que na noite primeira, ainda no hospital, minha esposa, que sempre teve a pressão de baixa a muito baixa, deu para elevá-la associada a visão turva. Quem é médico entende que isso não é bom sinal.

- Meu Deus, pensei, que vida sofrida! Mal tenho uma pequena alegria nas mãos, me vem uma dessas. E agora? Que medicamentos usar para tratar uma crise hipertensiva no puerpério? 

Ligamos para a obstetra e ela me deu orientações. De novo me encontrava na situação de ser responsável - mesmo de forma indireta - pela condução de uma pessoa amada. Carreguei nos braços meu pai infartando; internei, no setor de neurologia em que estagiava, minha tia mais querida com derrame; venho lutando com minha mãe parkinsoniana que responde muito mal às medicações.

Desabafei com um amigo querido a angústia que me assolava, e ele respondeu com um sorriso tranqüilo:

- Tenha fé! A Espiritualidade não nos desampara. 

Isso o que ele me falou é da ordem da fé. É o que os cristãos mais ortodoxos entendem ser o caminho da salvação. 

- Mas a profissão médica é do tipo do ofício que Deus espera que façamos alguma coisa para resolver os problemas

Isso o que falei é da ordem das obras. É o que eu, no que entendo de Espiritismo, acho mais acertado pensar. Evidente que Espíritos bons nos amparam, mas mesmo sobre eles existe uma expectativa de agir salvadoramente sobre o problema dos outros. E assim segue a cadeia de responsabilidades, tanto maiores quanto mais poderes tiver o indivíduo, até o topo dos topos, em que reside Deus, que é a Inteligência e o Amor supremo que age constantemente em prol da nossa salvação, fim de nossas angústias. 

Embora eu tenha escolhido o caminho das obras, a fé não me desgruda. Qual das duas é a mais certa? Acredito que o equilíbrio instável que pende ora para uma, ora para outra no jogo das emoções da vida. 

Depois de dado o remédio que deveria devolver a pressão aos níveis normais, fui estudar as próximas drogas que poderiam ser usadas no puerpério para combater o mal que nos afligia. Não é que a nossa obstetra tenha jogado a batata quente em minhas mãos, sou eu que, desde que meu pai desencarnou, não paro de tentar resolver os meus próprios problemas de saúde e os dos meus. Fora o estudo, esperar. Esperança é o outro nome da fé.

Foi exatamente esperar, ter esperança, ter fé a que se entregou de corpo e alma um médico que conheci há não muito tempo quando sua esposa, acometida de doença grave, se encontrava em um leito de UTI. Ele era adepto de um cristianismo que pretendia ser o mais original possível, isto é, aquele que havia se manifestado nas origens. Um dia fui conhecer seus modos de vida. São humildes, patriarcais, portadores de um sentimento de família excepcional, sequiosos pela divulgação da Boa Nova, não com o intuito de formar uma nova igreja (nem nome se davam), mas de formar uma nova humanidade, enfim obediente a Deus, enfim livre da mácula da soberba de Adão e Eva. Amavam-se muito entre si. Muito embora eu não estivesse lá para ser convertido a nada, senti-me abraçado por um sentimento de bem-aventurança há muito não vivenciado. Para tornar-me adepto desse modo de vida, estritamente guardador das Escrituras no coração, me faltava apenas a convicção em seus dogmas, que, entre outras coisas, repudiavam a reencarnação e a comunicação com os mortos. No mais, que admiração! 

A esposa desse médico era como eu, algo cética, algo admiradora, mas não convicta, pelo menos não naquela “seita”. Tudo mudou com sua doença. Seu esposo ficou zeloso ao lado dela quase que ininterruptamente. Nada podia fazer a não ser esperar, rezar, ter esperança, ter fé. Era uma certeza absoluta que Jesus promoveria a salvação dela. Sua crença era tão inabalável que a sua presença constante ao lado dela era uma forma de testemunhar o milagre que iria acontecer. Ela se recuperou e algo dentro de si cicatrizou. Fechou a ferida que o mundo pós-moderno nos provoca quando nos arranca o espírito e nos joga na correria nula dos dias, na busca frenética de derrotar o adversário e crescer na rinha dos mercados. O amor dela se agigantou quando acordou da sedação e viu aquele que esteve velando a sua cura como ninguém. Aquele que só queria que os dois, juntos, amassem a Cristo - juntos! Ela se converteu. Hoje acredita, definitivamente, no poder deste Deus que tira as pessoas das catacumbas quando o terceiro dia quer descansar. 

A pressão de minha esposa baixou, retornou ao normal, permaneceu baixa o resto da noite e no dia seguinte. O medicamento que foi dado para ela era de uma família tão fraca de anti-hipertensivos que eu acredito ter sido mais uma questão de ela ter conseguido urinar, coisa que estava faltando, pois a anestesia que havia tomado para realizar a cesárea tinha imobilizado os sentidos do umbigo para baixo por um bom tempo. Eis minha explicação racional e materialista para a sua melhora. 

Ainda que exista uma explicação material para a melhora destas esposas de que lhes falei - explicação esta a que a ciência se aferra - não posso deixar de enxergar que a própria matéria e suas mudanças são manifestações divinas em nossas vidas. Quando não temos nada o que fazer a não ser esperar, Deus permanece agindo em sua dança invisível no palco de nossos interstícios. 

O que os cristãos que guardam as Escrituras no coração falam não é que nossas obras são nulas, mas que são incomparáveis às de Deus. Nisso eu sou obrigado a concordar. O que somos, os pequenos, em comparação ao Senhor de tudo? Todos nós nos movemos e nos agitamos em um jogo de ascensão infinita rumo ao Pai. Ele trabalha diuturnamente para nos chamar e nos acolher. Deus não tem fé, não precisa ter. Sua vida é presença. Resta-nos crer em Sua existência e em Sua providência, Sua benignidade e Seu amor. É a que rendo o espírito quando me são inúteis as mãos

Durmo ninando o pequeno que preenche o berço dia desses vazio, e contemplando a mãe dele bem ali, saudável. Amém!