sexta-feira, 29 de março de 2013

Por ocasião da Páscoa



Alguns dogmas fazem a grandeza do Cristianismo. São os mesmos que, de tão estupendos, provocam a incredulidade em muitos. Então, alguns dogmas fazem a derrocada do Cristianismo. É bem preciso ter fé naquilo que a razão rejeita. 

A ressurreição de Cristo é o fenômeno mais grandioso de que tenho notícia, tanto mais quanto foi a única ressurreição que sobreviveu na mente da nossa civilização. 

Osíris, no Egito, morreu, ressuscitou, se tornou rei dos mortos. Ulisses penetrou no Tártaro, mirou as sombras de quem um dia foi gente, e saiu. Orfeu encarou Hades e voltou. 

Cada um trouxe de lá uma sabedoria. Mas, talvez a de Cristo tenha se perpetuado (além de ter sido imposta por uma Igreja-Estado) por ter melhor preenchido o coração dos humildes. 

A mensagem por trás do retorno glorioso do Salvador em corpo e alma, com o mesmo olhar penetrante e as últimas chagas que o penetraram, é a de que nenhum espinho da vida humana poderá corromper a pessoa que você amou. Portanto, o dogma de amar ao próximo se elevava a sua máxima potência, já que mostrava suas faces depois da morte. Jesus imortalizava o amor, mas não um amor qualquer, abstrato, como o Bem e o Belo de Platão, mas um amor singular, que leva em conta o corpo - não só a alma - e as cicatrizes, isto é, a história do que se viveu junto, do que nos singulariza. 

Com um detalhe, essa imortalidade do amor foi instaurada pelo Cristo, Ele foi o único a fazer essa passagem. A travessia foi Dele, assumiu essa Páscoa, sangrou por ela. Ao nosso encargo ficou apenas a aceitação de tudo isso e a fruição do amor inocente e alegre nesse mundo lavado pelo Seu sangue.

O Espiritismo despersonalizou essa mensagem. Esse foi o seu maior pecado, e sua maior virtude. Todas as pessoas são imortais, independente de Jesus Cristo - é uma lei de Deus feito a gravidade. Ressuscitamos em Espírito - lembranças, inteligência e emoção. Ressurgimos em Corpo - individualidade singular. Carregamos as cicatrizes de nossa história no Perispírito, este corpo não feito de carne. O Amor é o sentimento sublime que nos conduz ao paraíso do Ser. 

Espírito, Corpo e Amor imortais, todos os elementos estão aí, de outra forma. Esmaeceram-se as cores do milagre, fizeram sombra, contudo, ao resto da humanidade, atrelando a salvação a um comportamento universalizável e não à aceitação do poder de uma pessoa específica.

O Messias, sim, trouxe a mensagem de forma inigualável, mas não fez a passagem por nós. Cada um é responsável por aprender a amar como Ele amou e, percorrendo seu calvário, celebrar sua páscoa, derramar do coração o sangue com os espinhos da própria vida. 

Há muitos sonhos pelo mundo, haveremos de sonhá-los. Há muita traição, também, deveremos sorve-la. Várias cruzes em que seremos pregados. Não fugir delas é exortação constante dos Espíritos Bons que nos assistem e torcem por nós. 

Jesus é o Caminho, não os Pés. 

domingo, 24 de março de 2013

Conhecereis a Verdade e a Verdade vos Libertará




No Espiritismo, a liberdade humana é relativa. O absoluto é Deus. Nada diferente de qualquer outra doutrina cristã. Sendo o homem criação de Deus, há um propósito para cada criatura. Qual o propósito do homem? Pra que ele serve? É o que determinam as leis divinas, como um manual de instruções.

Quais leis nos governam? Moisés apresentou algumas no decálogo de pedra. Jesus exemplificou tantas na sua passagem pela Terra. Os apóstolos tentaram escrever alguma coisa nos Evangelhos. Kardec colocou dez em O Livro dos Espíritos. Cito apenas estes porque coincidem na mesma interpretação do que é o homem, somos filhos de Deus submetidos às suas leis, e na mesma forma de encontrar as leis, haja vista, pela Revelação

Deus, pretende a Bíblia, revela à Moisés. Jesus, aos apóstolos. Os Espíritos, à Kardec. 

Os filósofos do modernismo abominavam essa questão da sabedoria revelada. Com razão! Qualquer pensamento que fugisse da linha era cortado pelo argumento de autoridade, isto é, pelo que estava escrito na Revelação. Rousseau nos ilustra esse conflito em Emílio com o diálogo do Raciocinador contra o Inspirado:

O INSPIRADO: O entendimento que vos concedeu! Homem mesquinho e vão! Como se fôsseis o primeiro ímpio que se perde na razão corrompida pelo pecado! O RACIOCINADOR: Homem de Deus, também não sois vós o primeiro velhaco que apresenta a arrogância como prova de sua missão! O INSPIRADO: O quê? Os filósofos também injuriam? O RACIOCINADOR: Às vezes, quando os santos lhes dão o exemplo. O INSPIRADO: Oh! tenho o direito de falar assim; falo da parte de Deus. O RACIOCINADOR: Por que não me mostrais o título, antes de usardes do privilégio.


Kardec não deixa de abordar esse assunto. Primeiro, na forma como escreveu O Livro dos Espíritos: perguntas, respostas e comentários. Alguém, algum dia, teve a ideia de travar um diálogo racional com as Revelações? Não só questionar, mas debater, esquadrinhar. Se teve, manteve em segredo - ciência oculta. O professor Rivail democratizou a pesquisa. Depois, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, propondo um método que livrasse, ao máximo, as revelações de um viés de seleção de castas de Espíritos, na busca de um discurso que fosse comum a várias comunicações de diferentes sessões mediúnicas, de diferentes países, ao que ele chamou de Controle Universal dos Espíritos. Alguém, algum dia, teve a ideia de engendrar um método de pesquisa para entrevistar Espíritos, se preocupando com vieses de seleção? Se teve, Kardec foi o primeiro. Por fim, em A Gênese, quando ele tece longos comentários sobre as particularidades da revelação espírita, argumentando que revelações de Espíritos, na verdade, temos a todo instante na história da humanidade. Não é preciso ter um médium para um Espírito revelar algo. Há gênios do lado de lá e do lado de cá, desencarnados e encarnados. Ambos revelam algo aos comuns dos mortais. A nova atitude que o homem espírita deveria tomar, bem no espírito da revolução Iluminista, era submeter as revelações à crítica da razão, pois há gênios bons, bem como os há bobos.

Não bastava simplesmente uma entrega de fé e emoção para escolher qual profeta ou qual tribo seguir. Em um mundo que se globalizava e começava a fazer correr a informação na velocidade de um telégrafo, era importante o discernimento racional para separar joio e trigo. 

Isso é toda uma revolução na forma de se comunicar com o Além que ninguém percebe. Se perceber, torna-se simpatizante do Espiritismo.

Algumas perguntas são muito pertinentes depois de tudo que falei. Revelo-as para evidenciar que tenho consciência das lacunas que merecem ser enfrentadas em outros momentos: 1. Como pensar qualquer coisa sobre Deus, o absoluto, dentro de uma perspectiva humana, relativa por natureza? Dessa forma, como afirmar qualquer coisa sobre Deus? Não seria ultrapassar uma linha que nos é interdita pela nossa limitação? 2. Idem para as Suas leis. 3. Leis que emanam de um Ser Absoluto para determinar o que devem fazer os homens?! Não seria o Espiritismo mais uma doutrina filha do Antigo Regime, alheia ao ambiente democrático, reacionária, portanto? 4. Para ser revolucionária, a atitude de Kardec perante os Espíritos, seria preciso antes saber se Há Espíritos.

Cada uma dessas questões, qualquer dia desses, tentarei esmiuçar. As duas primeiras com mais dificuldade que a última, já que esta os amigos já podem encontrar resposta logo ao abrir O Livro dos Médiuns. Vale dizer que com o “não” a essa pergunta, todo o resto do Espiritismo é vão, e assim, digo sem medo, pode esquecer tudo o que falamos. Mas se o “sim” teimar em aparecer, os comentários prosseguem por aqui, com muito gosto!

sábado, 16 de março de 2013

Espiritismo: entre Modernos e Nietzsche (Parte I)




O contra-argumento clássico ao amor fati de Nietzsche, isto é, ao amor de tudo o que é presente, é simples, objetivo, cheira a banal, mas é incontornável. 
- Amar tudo o que é presente? Então deveríamos amar Auschwitz?

Mas, Nietzsche não era um hipócrita. Quando um cataclisma arrasou a ilha de Java, ceifando duzentas mil vidas, ele exclama: “Que magnífico!”, diz um de seus biógrafos Daniel Hálevy. 

O terremoto de Lisboa de 1755 também foi uma carnificina, que deixo a conhecer na narrativa de Oliveira Martins sobre a História de Portugal:

A onda do povo aflito, retrocedendo, a fugir do mar, tropeçava nas ruínas; e as quedas, e a metralha dos muros que tombavam, abriam na floresta viva, aditada pelo vento da desgraça, clareiras de morte, montões de cadáveres e poças de sangue, dos membros decepados, com manchas brancas de cérebros derramados contra as esquinas.” (clique aqui para mais detalhes)

A resposta dos pensadores da época, os modernistas, se deu em termos de enxergar a natureza não como uma mãe, a maneira dos antigos que veneravam Gaia, nem dádiva de um Pai bondoso, como pensavam os cristão sobre Canaã, era uma força neutra a quem se devia combater e superar, prever e dominar, com as armas da amada ciência que nascia. A natureza humana era mais importante que a natural natureza.

Para Nietzsche, o mundo é definitivamente um caos, e daí? Amá-lo como ele é. Forças ativas nos geram e faz florescer tudo ao redor. As reativas nos matam e provocam a renovação dos seres. Estupidez humana que, não sendo mais do que um elemento (um sintoma) do mundo, quer se destacar dele e tentar enlaçá-lo. Sabedoria é entregar-se ao fluxo da vida e felicitar-se com o que há desde agora, inocentando o que há de vir. 

Até mesmo Auschwitz? E o rosário esquelético da fome? E as leucemias japonesas do pós-bomba?

O que vai distinguir o reino humano dos outros reinos “inferiores”, bem sabem os modernos (Rousseau no topo desse pensamento), é a sua liberdade. Capacidade de se desvencilhar da sua natureza primitiva para ascender a um novo patamar, uma segunda, terceira, quarta natureza. Essa faculdade explica tudo, da caridade à crueldade. Contudo, não fica o universo alheio aos excessos do homem. Definitivamente, é um só cosmos, diríamos mesmo tratar-se de um organismo. O homem, parte dele. Livremente o homem age, sutil ou avassaladoramente o universo reage. 

Liberdade e Necessário Retorno, eis o que pode explicar tudo ao nosso redor, o que me dedicarei a falar em outra oportunidade. Acredito que essas duas ideias, com as quais o Espiritismo joga, esclarecem a vida de forma surpreendente e conciliam as visões que coloquei divergentes até aqui. 

sábado, 9 de março de 2013

A contribuição de Nietzsche para o Espiritismo




Esse assunto é extremamente polêmico. Nunca vi abordagem nenhuma a respeito. Pelo contrário, só vejo ataques contra o filósofo do martelo. Nietzsche mesmo se considerava o imoralista, mas o Espiritismo tem um fim eminentemente moral; se considerava o anticristo, mas o Espiritismo se considera filho do Cristianismo. 

Então, em que lamaçal eu vou querer entrar?

A maior contribuição que Nietzsche legou ao pensamento humano foi a desconstrução dos ídolos. Para ele, ídolos eram todas as ideologias que colocavam esse mundo daqui como inferior ao “mundo de lá”, as coisas de agora como inferiores a de outrora. Incluía nessa iconoclastia as doutrinas de promessas de um mundo melhor, haja vista, comunismo e anarquismo. Todas as profecias levavam a se querer mais do que se tem, e a amar menos o que se é.

Eis a denúncia mais importante e norteadora de toda a filosofia nietzscheana: a relativização da nossa vida de agora por qualquer coisa do além. 

Mas, o Espiritismo é tudo isso: doutrina do amanhã, do futuro, da vida do além! O martelo de Nietzsche acertaria a nossa doutrina em cheio. 

Não. Aí é que está! Dentro da nossa doutrina há as promessas, mas há também os chamados para viver a vida em abundância desde já. Pululam de mensagens dos Espíritos o convite para admirar a obra do Criador que nos cerca desde o presente momento. Viver as pequenas felicidades desse mundo, mas vivê-las de tal modo que possamos santificá-las. Não é nos exortar para uma vida de sacrifício, mas para um deleitamento da riqueza de nosso pai: somos os herdeiros da Terra. A vida transborda em todos os cantos do universo. Espuma o cosmos em arrebatadora imponência!

Até a própria reencarnação pode ser vista como parte desse projeto de viver tudo aqui em baixo em plenitude. A morte nos arremessa para o lado de lá? O renascimento nos devolve para o lado de cá! E, no vaivém desse mar existencial, nos revoltamos contra as ondas em que espiralamos, até que possamos estar entregues a graça de pairar sobre o fluxo da vida. Serenidade!

Então, Nietzsche faz uma denúncia para as doutrinas do amanhã que é importante estarmos atentos, sob pena de estarmos deixando manifestar a doença de nossa alma, a decrepitude do nosso espírito, em uma palavra, a falta de vontade de viver.

Mas, o que acontece com as mil dores que nos circundam nos seres que amamos? Como amar os nossos próximos, não os distante, mas aqueles mais íntimos, sem sentir o peso do sofrimento que os perturba? E mesmo os próximos desconhecidos: como não se inquietar com a fome dos africanos, com a ossada de crianças famintas, com a ferida aberta de países em guerra? Se entregar perpetuamente a fruição do prazer do momento presente não seria cinismo, indiferença mórbida diante dos semelhantes que são consumidos nas injustiças sociais? 

Eis o outro lado da moeda para cuja efígie Nietzsche olhava com sincero nojo. Mas que nós, os trabalhadores por um mundo novo, olhamos com desejo do melhor:

- Não podemos amar plenamente, enquanto não amarmos todos unidos, de uma vez só!

sexta-feira, 1 de março de 2013

À humanidade




Certo dia um anjo olhou para baixo
       Para baixo de onde, se ele estava no meio do infinito?
Não. Certo dia ele olhou para cima
É! Olhou para cima porque voava entre uma galáxia e outra
E passou por baixo da Terra

- Por que logo a Terra?
  Porque fui eu quem o vi!

Ele olhou e parou
Passou uma vista breve por toda essa gente

Os milênios passam breve nos olhos de anjo...

Sente um aperto no peito, feito desejo

- Desejo de que?

Desejo desse cuidado de Deus
Que nos toca os corpos de argila
Nos risca com dedos cósmicos
Nos aquece com giros solares
Quantos mil giros?!
Nos molda com paciência infinda
Nos acolhe em Seus braços

Se mela

Quando menos se espera
Estamos sujos de estrelas!

- Desejo de que? 
Do vermelho, do branco, do amarelo
Do negro do espaço
Pintado na carne

Enquanto seu corpo - armadura estelar
Inquebrantável

Enquanto sua cor - luz celeste
Imperecível

- Desejo de que?
Da liberdade dos que se afastam
Da festa para os que voltam
Da lágrima de quem tem o peito apertado

E, num átimo, invejando
Se vê novamente caindo
Se apequenando
Se consumindo

Até que as asas da noite
Se fecham num corpo pequeno
De negro menino
O negrume dos olhos
       Apagado 
             e lindo!

Quis fugir de tudo o que tinha
Pela eternidade a fora

E fora da eternidade
Se escondeu
De novo
Dentro da humana 
                       tão humana
                              humanidade.


(Inspirado na poesia Os Anos são Degraus divulgada no blog Espírito de Arte de 23/02/13)